Todavia seja a tua vontade […] Lc 22.42
Somos filhos do nosso tempo e isso nos impõe algumas tarefas e desafios que creio serem exclusivamente nossos e de mais nenhuma outra geração. A igreja, ao longo de sua história, teve de desenvolver meios de ser sal da terra e luz do mundo, de acordo com o tipo de apodrecimento e escuridão causados pelos pecados predominantes naquelas respectivas gerações. Não é diferente conosco.
Peculiaridades de nossa geração
O fato é que hoje temos nossas peculiaridades, e temos de estar sensíveis para identificá-las e tratá-las à luz das Escrituras. Vivemos o tempo em que homens não são mais homens, mulheres não são mais mulheres, o certo não é mais certo, o errado não é mais errado, o belo não é mais belo e o feio não é mais feio.
Estamos numa era esquizofrênica em que a realidade e a verdade já não importam quase mais nada. Os sentimentos e a imagem tomaram de assalto o lugar da verdade e valem tanto ou até mais que a própria realidade, e este, sem dúvida, é um grande desafio para os que professam que a fé vem pelo ouvir e é a prova das coisas que não se veem.
Claro que a fé cristã contempla os sentimentos, a beleza e a imagem, mas nenhum destes aspectos da criação deve tomar o lugar do Criador. Eles são um meio que aponta para o fim de todas as coisas que é o Senhor, e não fins em si mesmos que devem ser adorados no lugar do Criador.
Idolatrias escolhidas, objetivos definidos.
Ocorre que uma das formas preferidas de idolatria escolhida por nossa geração, é, justamente, a de glorificar os sentimentos e a imagem, colocando-os no lugar de Deus, como senhores de nossa existência e mentores de nossa maneira de olhar o mundo.
O bombardeio de recursos como fotos, vídeos, clipes, músicas, artes, séries, filmes, novelas, redes sociais, espetáculos, e tudo mais que fale intensamente conosco através da visão e toque profundamente nossos sentimentos, gerando prazer e bem-estar, é onipresente e inesgotável.
Este arsenal de recursos afetivos e audiovisuais pouco a pouco vai minando nossas convicções, tirando-nos da realidade e nos transportando para um mundo fantasioso e relativista, de forma que não nos apercebamos disso, até que cheguemos finalmente ao ponto de questionarmos se, de fato, existe verdade; ou que ressignifiquemos nossas certezas, transformando-as em conceitos politicamente corretos, que sejam aceitos sem maiores problemas por quem dita as regras do que é certo e errado na atualidade, e de quebra, se adaptem convenientemente ao nosso coração idólatra e pecaminoso. É um processo lento de conformação, porém, altamente eficaz. E a igreja, infelizmente, não está imune a ele.
Os resultados desta estratégia já podem ser percebidos claramente hoje por quem quer que seja, basta que se observe os caminhos que temos tomado como sociedade, em algumas das questões mais estruturais de nossas vidas, que estão sendo entregues abertamente à idolatria do sentimentalismo. Questões que dizem respeito a gênero, casamento, aborto, paternidade, maternidade, educação, direito, política e tantos outros aspectos éticos cardiais da nossa existência, têm sido avaliados sob o escrutínio final da afetividade. Em linhas gerais, o que detém a palavra final em nossos dias são os sentimentos.
Problemas vitais com a idolatria do sentimentalismo.
O problema, ou um dos inúmeros problemas de se adotar o parâmetro sentimentalista como juiz final da realidade, é que existirão momentos em que nossos sentimentos não estarão em sintonia com o que é correto. A Bíblia Sagrada nos adverte recorrentemente que nosso coração é enganoso e dele procedem os maus desígnios, palavras do próprio Cristo estas últimas.
Existirão momentos onde nossos desejos terão de ser controlados, onde nossa vontade idólatra de trair, roubar, olhar, humilhar, se orgulhar, mentir, fraudar, corromper, ofender, esconder, deverá ser refreada e esmagada.
Não somos chamados a ser idólatras de nós mesmos e de nossos sentimentos, mas a servir em humildade e inteireza de coração aquele que é por definição, Rei e Senhor, sobre tudo e sobre todos. Por mais que pensemos estar destronando-O com nossa arrogante e tola idolatria, Ele jamais deixará de ser o que é.
Um antídoto.
É exatamente este o cenário onde nós cristãos estamos plantados como igreja de Jesus. E por isso, corremos o risco todos os dias de nos deixar levar por esta incontrolável idolatria dos sentimentos, e acabemos, ou por nos aproximar da igreja com as motivações erradas, ou por promover ações como igreja com as motivações erradas.
A música boa, o layout lindo da igreja, as mensagens encorajadoras e inspiradoras, as pessoas legais, os espetáculos promovidos de alta qualidade, nosso círculo social construído todo ali, a igreja promovendo inúmeras ações sociais na comunidade, enfim, todas estas coisas podem ser positivas, mas não são elas que legitimam a igreja, e podem perigosamente se transformar em ações focadas exclusivamente no prazer e na exaltação humana, afinal, se observarmos bem, todas elas podem ser encontradas facilmente em diversos outros tipos de organizações, principalmente naquelas promotoras de entretenimento.
A igreja, todavia, sempre teve e continuará, até a vinda do Senhor, tendo um papel muito específico e intransferível na historia da humanidade: ela é a portadora da mensagem mais poderosa que já existiu.
Temos de continuar firmes na certeza de que sobre nossas mãos está a mensagem de Deus aos homens, é isto que faz da igreja, igreja. A mensagem que carregamos é capaz de atingir o coração humano de forma muito mais profunda e transformadora que qualquer recurso audiovisual ou sentimental que já existiu ou existirá. Esta mensagem, e somente ela, é capaz de tocar e redimir o âmago da idolatria do coração humano, seja em que época ou contexto for, por isso estamos tratando-a como algo tão central, especial e que deve ser tão bem discernido e resguardado. Estamos tratando da chave de tudo. A pedra sobre a qual devemos construir nossa existência sob hipótese alguma deve ser nossos próprios e inconstante sentimentos, antes, a rocha da nossa existência deve ser sempre e de uma vez por todas, Cristo e seu magnífico evangelho!
Um (o) exemplo final.
O maior exemplo de que as sensações, os sentimentos e as imagens, não devem ser o fator decisivo das nossas ações é o encontrado no Jardim do Getsêmani. Ali Cristo experimentou a maior aflição de todas! Ali Ele quis parar. Jamais homem ou mulher alguma poderá experimentar algo minimamente parecido com o que Cristo experimentou naquele momento. Sua vontade era de que o Pai, se possível fosse, passasse dEle aquele cálice. Tudo que poderia e poderá haver de mais aterrorizante na história, concentrado num momento só, bem diante da face de Jesus! O Filho de Deus estremeceu.
Mas qual foi Sua atitude mesmo diante de tamanha aflição? Ceder às suas vontades? Seguir seus sentimentos? Não! Cristo resistiu, e por um amor inexplicável a seu Pai e a nós, Ele enfrentou o que deveria enfrentar, venceu a morte e nos deixou a promessa de que se estivermos nEle, teremos vida eterna e faremos coisas ainda maiores do que as que Ele fez.
É necessário que submetamos nossa fé a uma avaliação honesta no que diz respeito aos fundamentos sobre os quais ela está firmada. Que tipo de fé temos construído? Trata-se de uma fé bíblica ou sentimental? Está firmada na inabalável pessoa e obra de Cristo Jesus ou em minhas sensações e arrepios passageiros? Como cristãos, possuímos absolutos claros e inegociáveis ou temos sido levados por quaisquer ventos de ideologias, teologias ou doutrinas modernas? Estamos preparados para defender nossos postulados custe o que custar num mundo hostil e avesso ao cristianismo bíblico e seus defensores? São perguntas necessárias que farão com que nos olhemos no espelho francamente em busca de conserto e arrependimento diante do Senhor.
Que Deus nos alcance!