O conceito de livre-arbítrio tem sido sustentado ao longo da história como algo absolutamente óbvio nos círculos de compreensão teológica e sociológica da vida. É como se esta premissa fosse tão evidente que não precisasse ser provada filosófica e logicamente. Contudo, alguém que crê na existência do livre-arbítrio quando desafiado a prová-lo filosófico, teológico e logicamente, geralmente se vê em grandes apuros, devido a inconsistência e até mesmo a irracionalidade da ideia.
Primeiro, se faz necessário definir o conceito de livre-arbítrio. A premissa básica nada mais é que afirmar a autonomia da vontade do ser humano, como se esta fosse livre de qualquer causação, ou seja, não existe nada que limite ou domine a liberdade do homem, ele escolhe o que bem entender, do modo que bem entender, livre de qualquer influência definitiva nas escolhas que faz.
Compreender a irracionalidade do conceito de livre-arbítrio é fundamental para uma avaliação mais assertiva da realidade que se vive. Para os cristãos esta compreensão é ainda mais importante, pois, tira o homem do centro da vida, como se ele fosse o motivo último da existência do universo, local em que a renascença e o iluminismo colocaram-no nos últimos séculos, conceito que tem sido tristemente absorvido e avalizado por grande parte da cristandade desde então. Compreender que não somos tão poderosos assim, traz o Deus das Escrituras de volta ao lugar de governador do universo e restabelece a ordem da criação: Deus como criador e sustentador de todas as coisas e os homens como suas criaturas, submissos a seu governo soberano.
Pretendo analisar brevemente o conceito sob dois aspectos: o cotidiano, que em primeira instância não envolve nosso relacionamento com Deus, e, o espiritual, que, aí sim, diz respeito a Deus, a religião, a espiritualidade e afins. Podemos facilitar a compreensão como sendo a primeira abordagem, sociológica, e a segunda, teológica.
Vamos a análise sociológica:
A vontade está atrelada a mente. A mente é o mecanismo que julga o que é melhor para ser feito, esta decisão causa a nossa vontade, que por sua vez, causa a nossa ação. E sobre quais bases está fundamentada a nossa mente? Sobre as bases do nosso caráter. Nosso caráter é uma composição complexa de inúmeros fatores como, educação familiar, formação acadêmica, influências culturais, espiritualidade, influências psicossociais, influências químicas, físicas, geográficas e uma imensa gama de outros fatores.
Diante disso, uma pergunta deve ser respondida: o que faz com que a mente de uma pessoa escolha a alternativa ou atitude A em detrimento da alternativa ou atitude B, ou vice-versa? Se entende-se que esta escolha é autônoma, não foi causada e não está baseada em nenhum elemento influenciador, teremos de descartar da lógica do raciocínio, toda esta gama de elementos reais descritos acima, inerentes a vida de todo ser humano. Se a escolha é autônoma e livre de causação, o que fez com que a mente desta pessoa escolhesse A ou B? O que tirou a escolha do ponto neutro? Se não é nenhum dos elementos vinculados ao caráter que influencia a mente, que por sua vez influencia a vontade, que por sua vez influencia a ação, é impossível não concluir que o que rege a decisão de alguém que tem ‘livre-arbítrio’ é o acaso. Pois, se meu caráter não causa minhas ações, porque minhas ações são livres de causação, minhas ações estão sendo regidas por impulsos autoimpostos da minha vontade completamente aleatórios. O que é completamente irracional. Em suma, se minha escolha é baseada na autonomia da vontade, ela está irremediavelmente vinculada ao acaso. Se ela é vinculada ao meu caráter, ela é causada, portanto, já não é mais livre.
Muitas vezes o conceito de livre-arbítrio é considerado como necessário para a existência da responsabilidade humana. Entretanto, ao analisarmos cautelosamente a questão, perceberemos que ao invés de subscrever a responsabilidade humana, ele na verdade a invalida. Pois, como alguém que tem suas ações desvinculadas de qualquer tipo de causação (caráter) e atreladas a instabilidade do acaso autônomo pode ter suas ações como sendo responsáveis e julgáveis? Responsabilidade é um conceito atrelado ao conhecimento e não a autonomia da vontade. Existe liberdade da vontade, sim! Mas esta está circunscrita a um sem número de fatores causativos e não ao conceito irracional de livre-arbítrio tal como se nos é apresentado corriqueiramente.
Analisemos agora, a partir da premissa teológica:
Seguindo a mesma linha de raciocínio, a vontade está atrelada a mente, a mente é o mecanismo que decide o que é melhor para ser feito, esta decisão causa a nossa vontade, que por sua vez causa a nossa ação. E sobre quais bases está fundamentada a nossa mente? Sobre as bases do nosso caráter. Analisando o caráter da raça humana à luz das Escrituras Sagradas, encontraremos inúmeras sentenças tanto no antigo como no novo testamento que apontam para uma grande e irremediável problemática no cerne daquilo que o constitui: somos pecadores, escravos do pecado e odiamos a Deus! (Rm 1.28-31, Jo 8.34) Dentre o sem número de textos bíblicos que apontam nossa depravação, escolhi o que julgo ser mais contundente quanto a questão, que se encontra nos versos 10, 11 e 12 do capítulo 3 da carta do apóstolo Paulo aos Romanos, que diz: “Como está escrito: Não há nenhum justo, nem um sequer; não há ninguém que entenda, ninguém que busque a Deus. Todos se desviaram, tornaram-se juntamente inúteis; não há ninguém que faça o bem, não há nem um sequer”. Como pode haver autonomia da vontade se nosso coração, apresentado nas Sagradas Escrituras como o âmago da nossa existência, está corrompido pelo efeito devastador do pecado?
Como descrito pelo apóstolo, nosso caráter está absolutamente comprometido com a maldade e com a inimizade contra Deus, o próprio Paulo em outra oportunidade diz que, na verdade, estamos mortos em delitos e pecados (Ef 2.1) e não apenas mortos, mas trabalhamos contra Deus, odiamos a luz e amamos as trevas. O homem na Escritura Sagrada, mais particularmente na carta aos Romanos, no capítulo 1, é apresentado como conhecedor de Deus, que preferiu suprimir a verdade em detrimento da justiça, e por isso é considerado indesculpável. Notem que o conceito de responsabilidade está atrelado ao conhecimento e não a um suposto livre-arbítrio.
Também em Romanos, no verso 23 do capítulo 14, o apóstolo diz que tudo que não provem de fé é pecado. Se todas as ações dos homens, incluindo seus pensamentos e expressões, que não vem de fé são pecado, onde está a neutralidade na escolha do homem? Como pode o homem não regenerado (que não recebeu fé de Deus) fazer algo que seja de fé? Toda a ação humana é permeada pelo pecado, não existe zona neutra. Um teste simples que comprovaria a inexistência do livre-arbítrio é o seguinte: comprometa-se consigo mesmo que pelos próximos 12 meses você não vai mais pecar. Você conseguiria? Quem conseguiria? Se temos autonomia e domínio exaustivo de nossa vontade por que não somos capazes de parar de pecar?
Podemos tirar algumas conclusões
O que faz o ser humano diante da pregação do evangelho optar por receber ou negar a Cristo? A vontade autônoma ou o caráter humano? A hipótese da autonomia da vontade invalidaria todo o argumento bíblico que apresenta a raça humana como não livre, mas decaída, escrava do pecado e incapaz de buscar a Deus como atesta categoricamente o capítulo 3 da carta aos Romanos. Se a hipótese correta é que o que causa a escolha do homem é seu caráter, como poderia o homem optar por buscar a Deus se sua natureza foi completamente corrompida pelo pecado a ponto do apóstolo sustentar que não há quem busque a Deus? Se a despeito de toda a argumentação acima, ainda seja sustentada a ideia de que o homem rompe todas estas barreiras e escolhe a Deus fundamentado em sua própria capacidade, então já não há mais espaço para a graça, que não vem de nós, antes, é dom de Deus.
Somos seres livres, que fazem escolhas reais a todo o momento, a Escritura jamais negou isso. Contudo, nossas escolhas foram cabalmente afetadas pela queda, estão circunscritas a natureza humana caída que será regenerada por completo, apenas no dia da vinda de nosso Senhor. Nossa liberdade de escolha não pode ser confundida com o conceito de livre-arbítrio ou da autonomia da vontade, como se em algum lugar da natureza humana existisse neutralidade. Quando a Escritura nos impele a fazer escolhas, ela não está afirmando a existência do livre-arbítrio. A lei nos foi dada para que compreendêssemos nossa miserabilidade e assim corrêssemos para o único Salvador que pode nos ajudar a cumpri-la. Aquele que vive para Deus, já não vive mais por si mesmo, mas é Cristo quem vive nele, e uma vez distante de Jesus, absolutamente nenhum ser humano seria capaz de cumprir qualquer requisito exigido por Deus.
O conceito de liberdade na Escritura Sagrada nunca esteve atrelado ao conceito de livre-arbítrio e sim ao novo nascimento. Lembremo-nos das palavras de Jesus: “e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará!” Jesus não disse: e tereis livre-arbítrio e o livre-arbítrio vos libertará. Só existe verdadeira liberdade de escolha em Cristo Jesus, pois, ele irrompe nossa desgraça espiritual e regenera nosso caráter, fazendo com que tenhamos condições para servir a Deus. Foi ele mesmo quem disse: “ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o trouxer” (Jo 6.44). Se ninguém pode ir a Jesus sem que o Pai o leve, onde fica o livre-arbítrio humano? É Deus quem nos vivifica da nossa morte em delitos e pecados. É Ele que nos atrai com cordas de amor. É Ele quem chama, justifica, santifica e glorifica (Rm 8.30). Compreender a irracionalidade do conceito de livre-arbítrio é compreender que se algum dia algum homem amou a Deus, foi porque Deus amou este homem primeiro, e que se algum dia algum homem escolheu a Deus, foi porque Deus escolheu este homem primeiro, de graça, nunca partiu de nós, para que não viéssemos a nos gloriar. Jamais teríamos capacidade de buscar a Deus, mortos em nossos pecados. Jamais escolheríamos a Deus, se ele não nos escolhesse para si, em Cristo, para sua própria glória. A salvação pertence a Deus e não depende de quem quer ou de quem corre, mas de Deus demonstrar sua misericórdia (Jn 2.9, Rm 9.16).
Que Deus nos alcance!