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“Qual o tema da próxima festa?” Quando era pastor de jovens, essa era uma das perguntas que sempre me faziam nas reuniões preparatórias de um acampamento. Talvez porque lá fora seria Carnaval, naquela igreja era tradição ter uma noite em que todo mundo ia fantasiado para o culto e para o evento social. E de uma coisa eu tinha certeza: alguém iria sugerir que todos fossem fantasiados como nos anos 1960.

Quase 60 anos depois, os anos 1960 continuam a nos fascinar com sua música, sua moda e até com seu espírito “rebelde”. Contudo, os fantasmas dos anos 1960 são muito mais presentes nos dias de hoje do que os seus encantos. Isso é verdade em pelo menos dois lugares: no Brasil e nos Estados Unidos. No Brasil, até hoje a política é dominada pelo golpe militar de 1964. Jovens que já nasceram no período democrático, pós-1985, chegam a defender uma volta à ditadura. Já nos Estados Unidos, o racismo e a luta pelos “direitos civis” marcaram tanto o povo americano que a política é dominada por supostos herdeiros daqueles movimentos. E, infelizmente, tanto no Brasil como nos EUA, velhos problemas daquele tempo permanecem vivíssimos.

A cor de sua pele

Um deles é o racismo. Aqui nos Estados Unidos, onde curso ThM pelo Reformed Theological Seminary e de onde escrevo neste momento, minha primeira aula deste segundo semestre de 2019 começou com o professor pedindo desculpas pelas vantagens sistêmicas que ele teve em sua educação, por ser branco. Não, ele não pediu perdão por ter cometido um ato racista, mas pela suposta vantagem que ele obteve pela cor de sua pele. Isso embora ele tenha estudado em escola pública, tenha amigos de diferentes etnias e tenha sido criado pelos pais com a visão de que todos são iguais. Parece exagero, não é mesmo?

Contudo, um olhar para a história da Presbyterian Church of America (PCA) ajuda a entender o porquê. A PCA é uma denominação presbiteriana conservadora que surgiu em 1973. Ela nasceu de pastores conservadores que saíram da igreja presbiteriana do Sul dos Estados Unidos, a antiga PCUS, que depois se fundiu com a igreja presbiteriana do Norte dos Estados Unidos, a PCUSA. Desde sua origem, a PCA sempre condenou a política de segregação racial do Sul dos EUA, onde negros e brancos usavam ônibus diferentes, estudavam em escolas diferentes e até mesmo em cultos iam a igrejas diferentes. No entanto, muitos pastores conservadores da PCUS, que mentorearam a geração que fundou a PCA, eram árduos defensores da segregação racial.

Felizmente, Deus levou a denominação a se arrepender publicamente de pecados cometidos durante a Civil Rights Era (Era dos Direitos Civis). Em seu documento de arrependimento, feito em 2016, é afirmado que a PCA:

reconhece, confessa, condena e se arrepende de pecados corporativos e históricos, inclusive aqueles cometidos durante a Era dos Direitos Civis, e dos contínuos pecados raciais cometidos por nós e nossos pais, como a segregação de adoradores pela raça, a exclusão de pessoas da membresia da igreja com base na raça, a exclusão de igrejas ou presbíteros da membresia de presbitérios com base na raça, o ensino de que a Bíblia sanciona a segregação racial e desencoraja casamentos interraciais, a participação na e a defesa de organizações de brancos supremacistas e a falha de viver o imperativo evangélico de que “o amor não faz mal ao próximo” (Romanos 13.10).

Mas por que reconhecer um pecado que, em tese, não foi cometido pela denominação? A PCA já nasceu em 1973 renegando a segregação racial. Embora esse argumento pudesse ser usado, a PCA tem a consciência de que uma igreja é formada por pessoas, não por instituições. E sim, muitas dessas pessoas vieram com uma bagagem racista e influenciaram outras gerações de alguma maneira. O racismo continuou a ser um problema. E, por esse motivo, é preciso admitir o pecado, confessá-lo e tomar medidas para curar as feridas que foram abertas. Isso é arrependimento verdadeiro.

Vale lembrar que não é apenas a PCA que tomou uma atitude como essa. A Convenção Batista do Sul também aprovou uma resolução nesse sentido, em 1995.

Que avivamento?

Além do racismo, há também o reconhecimento da omissão na luta pelos direitos civis. Como os conservadores queriam manter uma boa imagem perante a sociedade e desejavam paz, eles optaram por se distanciar dos protestos e polêmicas sobre os direitos dos negros no Sul dos EUA. Para isso, os conservadores defendiam a tese do “mandato espiritual da Igreja”, que dizia que as igrejas deveriam se preocupar apenas com assuntos “espirituais” e que outros assuntos seriam parte do chamado individual das pessoas.

Para mim, pelo menos, o que choca é que igrejas presbiterianas conservadoras estavam afirmando isso. Afinal, não é o calvinismo que nega a distinção entre sagrado e secular? Não é Abraham Kuyper que disse que Jesus reivindica a sua soberania sobre cada centímetro quadrado que existe? Calvino não fez a igreja envolver-se em assuntos de matéria “temporal” na cidade de Genebra? Se os conservadores evitavam esse envolvimento, os liberais buscavam envolver as instituições cada vez mais e mais na luta pelos direitos civis.

Logo existiam duas propostas de avivamento para as igrejas presbiterianas americanas. Os conservadores olhavam com esperança para o batista Billy Graham. Se a Igreja se dedicasse essencialmente à pregação do evangelho, como Billy Graham, então o crescimento e a multiplicação viriam. Os EUA seriam salvos. Já os liberais olhavam para outro batista, Martin Luther King. O verdadeiro avivamento e a salvação dos EUA estavam na luta pelos direitos dos negros, dos pobres e dos excluídos.

Quem estava com a razão? Talvez os dois lados, de certa maneira. Os conservadores imaginavam que Billy Graham seria um novo Jonathan Edwards ou George Whitefield, com experiências sobrenaturais de transformação da sociedade americana. Embora as conversões acontecessem aos milhões, a grande verdade é que a guinada liberal da sociedade americana não foi interrompida. O impacto cultural foi mínimo. Por outro lado, se os liberais conseguiram alterar leis e colocar o lugar das minorias no centro do debate americano, suas igrejas minguam a cada ano, destruídas pelo liberalismo teológico. O amor pela justiça social acabou prevalecendo sobre o evangelho, mudando a pregação cristã sobre o casamento, o divórcio, o homossexualismo, a família, entre outros. Mas isso não muda o fato de o racismo, por exemplo, só ser considerado abominável nos dias de hoje graças também ao esforço do cristianismo liberal.

Nada se perde, tudo se copia

Mas por que perder tempo aprendendo sobre a experiência presbiteriana americana com o racismo? Esse não é um problema das igrejas brasileiras, certo? Errado. Na verdade, há muitas similaridades entre os desafios enfrentados pelas igrejas americanas desde os anos 1960 e aqueles enfrentados pelas igrejas brasileiras hoje.

Comecemos colocando o dedo na ferida. Se as igrejas americanas apoiaram uma política de segregação racial, as igrejas brasileiras apoiaram uma ditadura militar que começou em 1964. Tanto lá como cá, o amor pela tradição, pela família e pela propriedade levou os conservadores a se aliarem ao governo. Em nome do mandato espiritual da Igreja e da obediência às autoridades, as igrejas brasileiras e americanas se omitiram de qualquer questionamento do quadro social. No caso brasileiro, havia o medo de que se perdesse a liberdade religiosa, ou de que as perturbações políticas entrassem nas igrejas evangélicas. Medidas radicais foram tomadas, como extinguir as mocidades presbiterianas. As instituições deveriam ficar longe das questões “deste mundo”.

Esse apoio durou até o fim do período militar, em 1985. A diferença mais gritante é que, enquanto as igrejas conservadoras americanas já se arrependeram do apoio dado à segregação racial, as igrejas brasileiras sequer pensam em discutir o assunto. Não há o reconhecimento do erro. E, da mesma maneira que o racismo ainda persiste na sociedade americana, o totalitarismo também encontra força no imaginário brasileiro. Pior: há pastores brasileiros que defendem uma volta a um regime de exceção!!! Um pastor americano não poderia fazer a mesma defesa do racismo.

E, falando em racismo, esse pecado também continua vivo e presente na sociedade brasileira atual. Não há maior evidência disso do que o adolescente negro que foi chicoteado em um supermercado por ter tentado furtar uma barra de chocolate. Furtar é errado. Mas pense se o adolescente teria sido torturado pela tentativa de furto se ele fosse branco ou japonês, por exemplo.

O que isso tem a ver com a igreja evangélica brasileira? Em primeiro lugar, porque as igrejas evangélicas brasileiras estão endossando um projeto de poder que nega e desmerece toda e qualquer questão referente aos direitos humanos. Um presidente que diz defender a tradição, a família e a propriedade usa o discurso em torno desses valores para ganhar apoio evangélico, mesmo que ele diga coisas que ofendam as mulheres ou negue os problemas de direitos humanos que temos no Brasil. Em segundo lugar porque o racismo existe dentro das nossas igrejas! Somos um país onde traficantes ditos evangélicos atacam terreiros de religiões africanas. A igreja aceita a conversão e a membresia de traficantes, e esses atacam apenas templos de religiões africanas. Eles não queimam mesquitas, sinagogas ou templos budistas, mas apenas terreiros. Há ou não um racismo aí? Por que não há condenações explícitas das denominações históricas a esse tipo de terrorismo religioso?

Aprendendo com o passado

A reflexão sobre a sua própria história é o que explica essa diferença de atitude entre as igrejas conservadoras americanas e as evangélicas brasileiras. As primeiras estão analisando o seu passado, confessando seus pecados e buscando mostrar frutos de arrependimento. Não que eu ache que tudo que esteja sendo feito nos EUA está certo. Mas há a tentativa de mudar. Já as igrejas brasileiras ainda tratam os anos 1960 como tabu. Não se fala sobre o assunto. Não se revê o passado, não se admite pecado. E pior: repetem-se os mesmos erros de antes.

Que Deus tenha misericórdia de nós. Que ele desperte profetas que denunciam o erro da igreja de se calar e se omitir diante da injustiça. Para ser conservador, não é preciso ignorar as injustiças de nossa sociedade ou bater palma para políticos com perfil ditatorial. O evangelho deve ser pregado, e essa é a prioridade! Mas o evangelho só muda vidas se ele for encarnado e vivido. E essa é a lição que os anos 1960 trazem aos cristãos do século 21.

Graça e paz do Senhor,

Helder Nozima Pereira é bacharel em Teologia pelo Seminário Presbiteriano de Brasília (SPB) e em Comunicação Social pela Universidade de Brasília (UnB). Atualmente, trabalha como oficial de chancelaria e é mestrando em Estudos Bíblicos pelo Reformed Theological Seminary (RTS), em Nova York. Fundador e editor do blog Reforma e Carisma.

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