No dia 3/4/2019, Luciano Potter entrevistou Fernando Gabeira pelo podcast Potter Entrevista. O tema da vez foi “Que diabos, afinal, são esquerda e direita?”. Lá pelo meio da entrevista, Potter pergunta: “o que acontece na mente humana que se deturpa, por que é criado um Stalin, um Hitler, grandes ditadores na América Latina no século passado, qual o desvio, em que momento dá errado?”. A resposta de Gabeira é lacônica: “Difícil precisar isso pra você”.

Na verdade, não é difícil, e somente o cristianismo é capaz de dar a resposta correta; somente o protestantismo dá a resposta completa; somente a Bíblia mostra a resposta adequada. E ela pode ser bem simples: dá errado no início, tanto histórico (Queda de Adão e Eva) quanto pessoal (nascimento de cada um); acontece a depravação total, não apenas na mente, mas na condição humana como um todo (alma, mente, coração, corpo).

Aliás, a doutrina da depravação total é central na teologia protestante reformada. Ela ensina que nós nascemos maus, ninguém se salva, ninguém é bom, ninguém é justo (Romanos 3). Mas não se trata apenas de não nascermos bons, nós temos os corações voltados para o mal, a tendência é sempre de o ser humano fazer o mal, escolher o errado (Rousseau não poderia estar mais errado em sua ideia de a sociedade ser responsável pela corrupção pessoal de cada um).

Portanto, somos todos pecadores, nossa condição comum é a Queda e o decorrente pecado, somos “inclinados para o mal”, como dizem os Cânones de Dort. Yago Martins, em seu livro “O cristão reformado: uma introdução bíblica aos pilares do protestantismo”, diz que a Bíblia apresenta uma antropologia “pessimista e descreve o ser humano em termos diferentes [daqueles que defendem uma bondade ou neutralidade inerente, como Rousseau]. Não um ser neutro ou bom, mas um que já nasce dado ao mal e corrompido pelo caminho do pecado. Na teologia, chamamos isso de depravação total. O homem está totalmente depravado desde o seu nascimento” (p. 57, Editora 371, 2018).

Além de pecadores totalmente depravados, nós ansiamos pela nossa redenção, o coração humano está sempre buscando uma solução para seu problema existencial. É como coloca Agostinho em sua afirmação clássica: nosso coração está inquieto enquanto não descansar em Deus. Acontece que, como não podemos descansar em Deus se não formos atraídos pelo Espírito Santo, o ser humano insiste em construir ídolos, em tentar encaixar a finitude da criação na infinitude eterna da redenção. Por óbvio que não encaixa.

A verdade é que o ser humano é carente de graça, e vai buscá-la sempre que puder, procurá-la em todos os lugares, até pensar que a encontrou e esperar a redenção de outra fonte que não a única possível: Jesus Cristo.

É nessa dinâmica que não apenas surge a idolatria mais escancarada – com seus dogmas e cerimoniais religiosos perante imagens de escultura ou astros celestiais – como também aquela adoração mais sutil, manifesta no culto a pessoas específicas, à personalidade, expressa na elevação de meros mortais à posição de heróis, redentores sociais ou políticos, veneração a qualquer ser humano caído como todos os outros. Basta que convença os outros de sua natureza divina e exerça poder coercitivo (Faraó, Nabucodonosor, César…) ou que demonstre alguma destreza excepcional, como foi o caso, por exemplo, do apóstolo Paulo (Atos 14.8-18; 28.1-6).

Somos pecadores carentes de graça que anseiam por redenção. Somente o Deus infinito-pessoal pode exercer esse papel. Como afirma Francis Schaeffer “O Deus real, de acordo com as Escrituras, é o Deus infinito-pessoal. Não existe outro deus como este Deus” (O Deus que intervém, p. 93, Editora Refúgio, 1985). Schaeffer ainda explica que Deus se dá a conhecer a nós porque não nos bastamos apesar de sermos pessoais, à imagem e semelhança de Deus, porque somos finitos: “O homem finito, justamente por ser finito, não tem um ponto de referência suficiente, se iniciar absoluta e autonomamente a partir de si mesmo, portanto necessita de um certo conhecimento. Deus nos dá esse conhecimento nas Escrituras” (p. 92). E podemos acrescentar que o conhecimento das Escrituras é redentivo, é o que se considera revelação especial ou verball, é onde Deus se revela para salvar.

Portanto, qualquer outro, além de não conseguir redimir a condição espiritual humana (limitando-se a combates sociais e políticos), irá decepcionar, mais dia menos dia. Não há herói genuíno ou salvador que não seja Jesus. Nem há outro meio moderno, pessoal ou institucional (Churchill, Thatcher, Obama, Trump, Lula, Bolsonaro, ONU, OTAN, Judiciário, Congresso, Ministério Público, mercado, polícia) de redimir o mundo e a vida que não seja o evangelho de Jesus Cristo. Qualquer tentativa de substituição do Cristo é pura e simples idolatria. Pode ser, até, que a exacerbada politização de todas as esferas da vida seja um sintoma dessa idolatria.

Recentemente, nos Estados Unidos, um editorial da revista Christianity Today provocou uma onda de posicionamentos em torno do impeachment do Donald Trump (enquanto escrevo, aprovado na Câmara e pendente de votação no Senado). Em toda a discussão, que até o momento contou com a participação do próprio editorialista, Mark Galli, do presidente da CT, Timothy Dalrymple, de Carl Trueman e de Wayne Grudem. O que salta aos olhos em todo o imbróglio são as considerações acerca da correção moral de Trump e de toda expectativa em torno de seu comportamento como pessoa, além de seu papel de presidente. Não creio ser possível encontrar uma resposta genuinamente bíblica a toda a questão sem considerar a depravação total e aplicá-la ao caso específico. É preciso admitir a seguinte premissa: Trump vai decepcionar. Todos vão.

Tratando-se especificamente do contexto brasileiro, não é difícil identificar o anseio coletivo por redenção através do populismo. A mentalidade brasileira foi construída e condicionada a esperar que melhorias e soluções venham do Estado, fruto da cultura paternalista e intervencionista que se construiu ao longo dos anos. A lista é grande, passando por Getúlio Vargas, Juscelino, Lula. Infelizmente, o contexto atual não é diferente. O governo Bolsonaro em nada se diferencia de seus antecessores nesse sentido. Pode até pertencer a outro espectro político, mas se insere no mesmo erro de solução religiosa para problemas civis. Então, a partir de um discurso moralista, o que se promete no fundo é a redenção, o que se comunica é a promessa de solução para o problema humano central. A reboque, a pessoa de Bolsonaro carrega outras figuras redentivas (e.g. Moro e Guedes), sempre encharcando o jogo político de personalismo. Mas não importa quem seja, o ser humano sempre vai decepcionar. Essa verdade vale para qualquer época e lugar.

Falta aos evangélicos no Brasil mais estudo de sua própria história e cultura. A falta de conhecimento faz-nos repetir erros simples. Em sequência à teologia, as escolas bíblicas nas igrejas deveriam ensinar o contexto político-social de quando o protestantismo chegou ao Brasil de forma definitiva, no século 19, quem foram os huguenotes que produziram a Confissão de Guanabara, quais as implicações político-religiosas da invasão holandesa do século 17 no nordeste brasileiro. É inescapável estudar analistas políticos como Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro com o mesmo afinco que se estuda teóricos estrangeiros como Grudem e Burke. Contudo, a despeito de livrar da ignorância, nenhum instrumental teórico será capaz de produzir efeito semelhante ao do evangelho, pois somente ele é o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê.

Os cristãos evangélicos brasileiros precisam, além de aprender sua própria história e formação cultural, entender que não há como “limpar moralmente” o Brasil se não for pela força da pregação do evangelho (vi até teólogo nas redes sociais falando em “limpeza ética” por meio da Lava Jato). Não bastante apenas entender, é preciso agir conforme esse entendimento. Isso não significa deixar de cobrar que os governantes ajam de forma correta, afinal, essa é uma implicação do evangelho, conforme ensina Romanos 13; significa desconfiar sempre de qualquer autoridade e esperar que ela exerça sua função como deve. Logo, esperar que uma correição moral coletiva parta do governo, do Estado, é extrapolar a expectativa adequada do cristão, é desviar o poder do evangelho. A autoridade nunca é instrumento de promoção do aperfeiçoamento moral, a ela cabe apenas recompensar quem faz o bem e punir quem faz o mal, mas a definição do que é bem ou mal, por princípio, não lhe cabe, de modo que este papel é apenas do evangelho. Não me furto do entendimento de que à autoridade civil cabe o estabelecimento de leis que promovem o bem e afastam o mal, mas isso é apenas consequência da determinação moral que somente pode ser moldada pela transformação coletiva e individual do evangelho somente; é a partir dessa dinâmica que a ética cristã moldou a cultura ocidental moderna.

Se a solução é somente pelo evangelho, o meio é somente por quem anuncia o evangelho: a igreja de Jesus Cristo. É na igreja que pecados são tratados, que a redenção é pregada, que os sacramentos são administrados, que a graça salvadora é operada. Portanto, diante dos poderes temporais, os cristãos devem agir sempre com ceticismo e desconfiança. Somente na eternidade deve ser depositada nossa esperança. Parafraseando uma fala do próprio Cristo, deixai ao que é temporal o temporal, ao que é eterno o eterno. Como afirma Bento XVI, “Sem a perspectiva de uma vida eterna, o progresso humano neste mundo fica privado de respiro” (Caritas in veritate, § 11). Portanto, reduzir a expectativa de redenção à dimensão política da vida é asfixiar o progresso humano, que só tem propósito se for perseguido enquanto olhamos para a cruz, para enxergarmos nela a redenção e o caminhar da história para a eternidade, encaixando as transformações sociais simplesmente como um aspecto limitado do todo no propósito divino.

Então, ficam ainda os questionamentos: onde está depositada sua expectativa de redenção? Mais especificamente, como você expressa sua sede por justiça? Esperando redenção por meio da política ou aplicando a necessidade de redenção à política?

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João Guilherme Anjos é um curioso por excelência. Formado em direito, especialista em constitucional, interessado por filosofia, aventureiro na teologia. Atualmente, cursa mestrado em teologia no Centro Presbiteriano de Pós-graduação Andrew Jumper e conduz alguns projetos editoriais, principalmente pela Editora 371. Livros: mais que lê-los, publicá-los. Um bobo apaixonado por Priscila e Livia.

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