Poucas palavras são usadas de formas tão diferentes quanto “profeta”. Entre os evangélicos, o profeta pode ser desde um simples pregador da Palavra até um porta-voz de Deus mais importante do que um pastor. Entre os muitos meio-termos usados, há a figura do profeta como uma espécie de crítico social, pronto para condenar os pecados e desvios morais de governantes e demais elites.
É nesse último sentido que muitos costumam falar sobre “a voz profética da Igreja”. A preservação dessa voz é o motivo pelo qual a instituição igreja não deveria se envolver com política partidária e se manter separada do Estado. Caso a igreja ande de mãos dadas com o Estado, por exemplo, indicando ministros, ela perde a sua credibilidade para criticar as autoridades.
Mas como essa voz tem se manifestado no Brasil? Ou, melhor ainda, como ela deveria se manifestar? Aparentemente, não há um consenso.
A voz que fala de dentro
Parte da igreja não vê problema algum em se misturar com o Estado e falar “do lado de dentro”. Isso tem sido marcante no governo Bolsonaro, onde um pastor presbiteriano é o Advogado-Geral da União e uma pastora é a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Mas, mesmo nos governos da era PT, pastores evangélicos também ocuparam cargos de indicação política.
Portanto, não é a preferência política ou partidária que impede pastores ou igrejas evangélicas de se envolverem com o Estado e quererem aparelhá-lo para atender suas reivindicações. Se nem todo pastor é indicado pela sua instituição, há igrejas que elegem bancadas parlamentares para representá-las e fazem pressão junto ao Poder Executivo para o atendimento de suas demandas.
Tampouco se trata de um fenômeno brasileiro apenas. Nos EUA, tanto pastores quanto igrejas, à esquerda e à direita, não hesitam em apoiar, profetizar e ungir seus candidatos. Igrejas fazem lobby no Congresso americano, mantêm escritórios de representação parlamentar e buscam emplacar pautas. Também podemos falar de exemplos do passado, como Abraham Kuyper, que reivindicou a soberania de Deus em todas as esferas da vida, inclusive a política, e tornou-se primeiro-ministro dos Países Baixos.
Aparentemente, esse é o modelo preferido das lideranças evangélicas brasileiras conservadoras para o governo Bolsonaro. O problema é que a moralidade da igreja acaba sendo contaminada pela moralidade dos políticos apoiados. Nos EUA, o excesso de envolvimento político é apontado como um dos motivos que afastam pessoas das igrejas. Outro problema é que a teologia pode ser sequestrada por causas políticas, especialmente agora que a política identitária tem se refletido em uma teologia identitária, com igrejas que são para negros, para o movimento LGBT etc, onde o evangelho se torna servo dessas questões.
A voz que não fala
Outra postura é o completo distanciamento entre igreja e política. Repare: não falo do Estado, falo da atividade política em si. Os temas políticos estão completamente ausentes dos púlpitos, das postagens dos pastores e das aulas de escola bíblica dominical. Há dois reinos distintos: o reino de Deus e o reino de César, e não compete a um reino qualquer interferência no outro.
Essa postura tem sido seguida por muitos reformados brasileiros e americanos. Passa-se ao largo de tudo que possa provocar polêmica. O papel das igrejas e dos pastores é puramente espiritual. Para esse grupo, a voz profética da igreja não tem nada a dizer ao Estado, fala apenas aos indivíduos para que, em todo lugar, se convertam.
Em princípio, essa postura tem muitas vantagens. Jesus e os apóstolos, ao que parece, mantiveram-se ao largo de debates políticos no Novo Testamento. A aparente neutralidade ajuda a pregar o evangelho a diferentes grupos de pessoas e não comprometeria o testemunho público do corpo de Cristo. Além disso, o distanciamento evita que o evangelho seja sequestrado por causas sociais ou políticas.
Mas essa postura também trouxe acusações pesadas que comprometeram a credibilidade da igreja. O silêncio dos protestantes sobre a escravidão, a segregação racial e o racismo nos Estados Unidos tornou-se uma mancha que traz culpa aos evangélicos americanos até os dias de hoje. A igreja deixou de ser vista como uma guardiã da Justiça ou como um possível agente de conciliação racial. No Brasil, a omissão evangélica diante da ditadura militar (para não falar no apoio, inclusive com delação de pessoas) também traz críticas e dificulta a visão de que a Igreja é uma instituição comprometida com a Lei de Deus, com a defesa do correto. Além disso, o silêncio diante dos problemas de violência, criminalidade e corrupção passam a imagem de que a igreja é conivente com esses problemas e desinteressada sobre a sociedade ao redor. É como se o evangelho afetasse apenas o espírito, e não tivesse redenção alguma a oferecer para o aqui e agora.
A voz que fala de fora
Além dos extremos acima, há uma terceira alternativa, que pode se manifestar em vários graus. Há a voz profética que trata dos assuntos políticos e se dirige às autoridades e ao Estado, mas sem fazer parte dele. Nesse paradigma, a separação entre igreja e Estado continua a existir, mas a igreja assume o seu papel como entidade da sociedade civil e externa sua opinião, inclusive suas condenações, mas sem comprometer-se com nenhum partido político específico.
Como dito acima, isso pode acontecer em vários graus. Pode ser um simples editorial de uma publicação evangélica recomendando o impeachment de um presidente, como recentemente fez a Christianity Today nos EUA. Por outro lado, pode ser o estudo feito por teólogos na Academia, procurando fazer uma análise teológica dos fenômenos políticos e a construção de uma teologia pública, mas sem que isso implique a fundação de um partido. Em um grau mais forte, instituições como a Igreja Presbiteriana do Brasil podem emitir documentos condenando o aborto ou conclamar dias de jejum e oração. Pode-se organizar marchas, atos e protestos em favor de causas, como faz Antônio Carlos Costa, por meio da ONG Rio de Paz.
Quando a igreja assume de modo ativo essa postura, ela se torna uma poderosa instituição a serviço da justiça e do Reino de Deus. Não queremos o reino de César. Mas é ingênuo pensar que o evangelho de Jesus não possui implicações sobre o poder na presente era. O simples fato de Jesus ser proclamado como Senhor e César ser apontado como um ser humano foi uma declaração política que levou o Império Romano a perseguir violentamente a igreja de Jesus. A Reforma provocou tensões políticas na Europa porque o rompimento com Roma e a adoção de novas formas de governo eclesiástico tinham um impacto político. Os puritanos desejavam não apenas uma igreja pura, mas uma sociedade pura.
Achar a dosagem correta não é uma tarefa fácil. Mas a dificuldade não exime a instituição igreja e os pastores de se posicionarem diante de questões que ameaçam a fé cristã. Os debates atuais não são menores que os do passado. Se no século 19 a dignidade da imagem de Deus estava em jogo quanto à escravidão, hoje o aborto traz o mesmo problema, em uma nova roupagem. A liberdade de pregação da fé cristã está em xeque diante das discussões sobre os limites da liberdade de expressão e o politicamente correto. Assim como nos dias de Constantino, há uma tentativa do governo brasileiro de lastrear sua existência em cima da fé cristã. O padrão evangélico de sexualidade é considerado uma forma de violência por grupos LGBT. E por aí vai.
Qual a nossa voz?
Esse cenário mostra claramente que, de um jeito ou de outro, a igreja se vê no meio de uma série de discussões sociopolíticas da nossa época. Por mais que finjamos que o assunto não é conosco, a grande verdade é que não apenas os atores seculares, mas os próprios fiéis olham para os pastores e para a instituição organizada em busca de um norte ou um posicionamento. E é preciso encararmos de frente esse desafio e escolhermos qual será a nossa voz.
Pode ser que nos sintamos como o adolescente cuja voz está mudando. Algumas vezes a voz sai fina e infantil. Outras, grossa demais. Falta experiência e maturidade. Mas a solução para o adolescente não é ficar calado. Ele precisa continuar a falar, e o tempo fará o crescimento vir, até que ele encontre sua voz adulta e madura.
Ainda que a escolha não seja a minha, conclamo a igreja brasileira a fazer o mesmo exercício. O silêncio já é, por si só, uma escolha. Mas que seja uma escolha madura, consciente e consistente, e não algo involuntário. Precisamos achar o tom certo da nossa voz profética.
Helder Nozima Pereira é bacharel em Teologia pelo Seminário Presbiteriano de Brasília (SPB) e em Comunicação Social pela Universidade de Brasília (UnB). Atualmente, trabalha como oficial de chancelaria e é mestrando em Estudos Bíblicos pelo Reformed Theological Seminary (RTS), em Nova York. Fundador e editor do blog Reforma e Carisma.