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Sobre tudo o que se deve guardar, guarda o teu coração, porque dele procedem as fontes da vida.” (Pv 4.23)

Em meio à crise mundial decorrente da pandemia causada pelo coronavírus, vemos que o ambiente de polarização instalado no Brasil pelo menos desde 2013 não se esvaiu. Pelo contrário, parece estar pior. Nesse ambiente de polarização não cabe meio termo, zona cinzenta, impõe-se uma adesão radical aos extremos, sob o risco de surgir uma acusação que coloca o interlocutor justamente no outro extremo de quem acusa.

O contexto facilita o desenvolvimento do sentimentalismo. A partir disso, não existe diálogo, existem apenas ofensas e insinuações maldosas. Em meio a um ambiente tóxico como esse, para lembrar de Dalrymple, o perigo de ser atraído e ter o coração capturado é enorme. Arrisco dizer que ninguém está imune.

Minha experiência

No meu caso, infelizmente, sinto que fui tragado ontem, quinta, 26/03 (publicação devidamente apagada). Embora esteja tentando manter a sobriedade e não ser enganado pelo canto da sereia que promete redenção através da política, sinto que falhei. Digo que falhei especificamente no âmbito das redes sociais. Os malefícios da polarização, porém, não estão adstritos a ela, têm seus filamentos enredados nos mais íntimos relacionamentos dentro das igrejas, tornando-se insuportável, para alguns, com quem pensa politicamente diferente.

Muito embora minha reflexão e as lições extraídas sejam fruto da minha experiência virtual, elas se aplicam sem dificuldade às relações mais concretas da vida cotidiana. Por isso, não se furte ao dever de vigiar suas relações e não permita que discordâncias políticas esgarcem a comunhão. O diabo mora no conflito, mas em nós deve reinar a paz.

Você sente que tem obrigação de defender qualquer visão política por entender que nela está a verdade? Que o preço não seja o respeito. Você entende que tem obrigação de alertar seu irmão que tenta te convencer a aderir a certo movimento ou espectro político? Que o sacrificado não seja o amor. Há momentos em que o melhor discurso é o silêncio.

A partir da minha própria experiência, tiro quatro lições que espero te ajude. 

Primeira lição

Se você tem a tendência de gostar da arena pública, participando das discussões que envolvem política, cuide para que ela não se torne tudo em sua vida. Não politize todos os aspectos da realidade. Nem toda discussão precisa ser necessariamente eivada de viés político. A política é uma parte bem pequena, e assim deve permanecer.

Segunda lição 

Cuide do seu coração para não depositar na política uma esperança escatológica que ela não é capaz de cumprir. Entenda, as autoridades públicas são chamadas a fazer justiça, não a salvar. Logo, nelas não habita bem inerente. Pelo contrário, elas manifestam bondade ou maldade de acordo com suas atitudes, pelo que é possível avaliá-las objetivamente. Não há espectro político inerentemente bom ou bíblico, existem padrões bíblicos a serem seguidos. Os cristãos não podem impor maior compromisso que o bíblico. É por isso que costumo dizer: não consigo fechar com nenhuma vertente, limito-me apenas a me classificar como cristão. De resto, esquerda, direita, conservadorismo, progressismo, tudo é somenos.

Do salvador, espero apenas bondade, por isso confio nele incondicionalmente e posso esperar dele salvação, afinal, ele não falhará. Quem promete e cumpre isso? Uma pessoa apenas: Jesus Cristo. No mais, há quem faça o mal, há quem faça o bem, há quem faça os dois. Não posso julgar qualquer político por suas qualidades pessoais e virtudes morais, mas pelas suas palavras e ações. Estas, ora vão falhar, ora acertar. Isso faz parte do jogo político.

Nosso dever é cobrar das autoridades que cumpram seu papel. Devemos orar por elas? Sim, no quarto, onde Deus nos vê. Devemos cobrá-las? Sim, na praça, onde a vida pública acontece. Faz parte da nossa luta por justiça. Uns se envolvem mais, outros menos, mas todos nós lutamos por justiça enquanto anunciamos a salvação que não se realiza nem se afasta nas realizações e frustrações temporais.

Terceira lição

Não ceda à tentação da idolatria política. Como saber se estou idolatrando na política? Um bom teste é o nível da ofensa. Você fica pessoalmente ofendido caso algum político seja ofendido, estigmatizado ou criticado? Bem possível que esteja idolatrando. Como aprendi com Yago Martins neste vídeo, o diabo na política não é Bolsonaro nem Lula (inclusive, trato disso em mais detalhes aqui). Não trate eles como diabo nem como deus, pois eles são apenas instrumentos, quer de bênção, quer de juízo. A bem da verdade, eles representam os mesmos ideais revolucionários, por caminhos diferentes. Como ensina Alfredo Bosi, “os extremos se tocam”. No fim, não é exagero classificar Bolsonaro como uma manifestação epigônica de Lula.

Foi especialmente neste ponto que senti ter exacerbado nas redes sociais. Parece que perdi o limite da frustração ao criticar injustamente uma medida boa de Bolsonaro (investimento nas pesquisas do usos de cloroquina, com expectativa de recuperação dos pacientes no curto prazo), considerando-a inerentemente ruim, muito embora não o fosse. Talvez seja mesmo falha ou rude a forma como ele se expressa? Sim, mas minha crítica foi exagerada. Esse abismo nos traga por meio dos processos psicológicos considerados de apelo imediato: sentimentalismo, agressividade, erotismo, medo, fetichismo,curiosidade. Os diálogos em torno da coisa pública devem se manter distantes desses processos tanto quanto possível.

Quarta lição

A última lição está relacionada à conscientização de que errei. Não me importa (e sugiro que também não te importe) críticas de terceiros distantes, pessoas com quem a interação não passa de curtidas e comentários. Porém, se um amigo próximo, que me conhece, me chama a atenção, devo parar para refletir. Nesse sentido, é preciosa a lição de Francine Veríssimo Walsh sobre relacionamentos intencionais, no livro Fonte para a vida (p. 114): 

O que aprendemos com o exemplo de Jesus é que nós não somos chamados a “abraçar o mundo” e ter relacionamentos intensos e profundos com todos. Pode parecer piedoso, mas no fundo é apenas uma via rápida para a estafa. Nós somos, sim, chamados a sermos corpo com todos, em unidade, mas Jesus nos mostra que podemos ter apenas alguns amigos mais próximos aos quais nos dedicamos com mais zelo.

Ontem, amigos queridos, desses mais próximos a quem me dedico com zelo, me chamaram atenção. Refleti. Concluí que errei. Errarei novamente, mas tentarei estar atento a obedecer a recomendação de guardar meu coração. Não deixe de fazer isso também. Pela sua saúde mental, pelo bem do convívio social saudável, pela boa fama de Jesus.

Conclusão

Por fim, reforço: vigie seu coração. Aprendemos com Paulo que podemos até ser atribulados, mas não seremos angustiados, pois a nossa esperança está além de toda essa temporalidade. Em 2Co 4.8-9, Paulo nos adverte que o cristão nunca chega ao limite do esgotamento. Veja: “atribulados, mas não angustiados; perplexos, mas não desanimados.

Perseguidos, mas não desamparados; abatidos, mas não destruídos”. Claro que o cristão ainda está sujeito a sofrer as consequências de dores emocionais, mas nunca chegará ao limite delas, pois toda essa carga que esgota nossas forças foi depositada em Jesus. Pelo fardo que ele carrega o nosso se torna leve, é por meio dele que não somos angustiados, desanimados, desamparados nem destruídos.

Está sentindo que vai perder as forças, principalmente por causa de tensões políticas? Corra para Jesus, nele há alegria infinda e paz para além de toda compreensão.

 

João Guilherme Anjos é um curioso por excelência. Formado em direito, especialista em constitucional, interessado por filosofia, aventureiro na teologia. Atualmente, cursa mestrado em teologia no Centro Presbiteriano de Pós-graduação Andrew Jumper e conduz alguns projetos editoriais, principalmente pela Editora 371. Livros: mais que lê-los, publicá-los. Um bobo apaixonado por Priscila, Livia e Julia.

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