Desde os tempos do Novo Testamento, as relações judaico-cristãs têm sido complexas, marcadas por desentendimentos e até mesmo animosidades. Isso pode ser percebido na carta de Paulo aos Romanos, especialmente no capítulo 11. Já em sua época, o apóstolo observava a tendência dos cristãos gentios de se orgulharem contra os judeus, os “ramos quebrados”. Lendo-o nos dias de hoje, também temos a impressão de que ele parecia prever que isso seria uma constante ao longo da História.
Acusados de serem “assassinos de Cristo”, os judeus foram perseguidos durante séculos por aqueles que diziam seguir o Messias. Seja durante as cruzadas e a Inquisição, ou até mesmo no Holocausto nazista, muito sangue judaico foi derramado por aqueles que afirmavam ser os novos herdeiros da aliança feita por Deus com Abraão. Felizmente, isso tem mudado um pouco nos últimos anos.
As atrocidades cometidas contra os judeus pelo Terceiro Reich levaram muitos cristãos – e até mesmo denominações inteiras – a revisar seus posicionamentos quanto aos membros da linhagem étnica de Jesus. A Nostra Aetate, declaração de 1965 do Concílio Vaticano II, é um grande exemplo disso. No documento, a Igreja Católica reconhece seus erros cometidos contra os judeus e reafirma sua eleição divina. No meio evangélico, documentos similares têm sido produzidos, principalmente com a ascensão do sionismo cristão após a independência do Estado de Israel, em 1948. Porém, por mais que todos esses esforços sejam bastante significativos, ainda não são suficientes para combater o ódio ao povo judeu.
Embora o chamado “antissemitismo cristão” esteja em declínio nos últimos anos, muitas outras fontes de perseguição aos judeus têm crescido de forma exponencial ao redor do mundo. De acordo com a Anti-Defamation League (ADL), mais de um bilhão de pessoas mantêm crenças antissemitas. Entre os entrevistados de uma pesquisa conduzida em mais de 100 países, no ano de 2014, 35% nunca ouviram falar do Holocausto. No Oriente Médio e Norte da África, 74% da população tem atitudes antissemitas. Na Europa, em uma pesquisa realizada em 2018, 40% dos judeus afirmaram sentir medo de serem fisicamente atacados diariamente. Apenas em janeiro deste ano, foram registrados 21 crimes antissemitas na cidade de Nova York. Em 2019, foram 234.
Segundo pesquisas da ADL, as causas para essa crescente onda de antissemitismo são as ameaças que vêm do nacionalismo da extrema-direita, do ódio anti-Israel da extrema esquerda e do radicalismo islâmico. Isso faz com que o fenômeno não esteja restrito apenas ao Oriente Médio ou ao mundo anglófono. Nos países de línguas latinas, a situação não tem sido muito diferente. O Brasil, por exemplo, é o país com a décima maior população judaica do mundo. Ainda assim, de acordo com uma pesquisa divulgada em novembro de 2019, 25% dos brasileiros têm atitudes antissemitas. O mesmo se repete em Portugal, de onde milhares de judeus foram expulsos nos anos 1500, muitos, inclusive, que tiveram o Brasil como destino.
No país lusitano, os números se assemelham aos de sua antiga colônia: 21% dos portugueses crêem em falsos estereótipos judaicos. Entre eles, 56% acreditam que os judeus são mais leais a Israel do que aos países onde vivem. Isso talvez ajude a explicar a recente publicação de charges com conteúdo antissemita na popular revista portuguesa Sábado. Em um deles, o primeiro ministro israelense Benjamin Netanyahu aparece empurrando um caixão com uma bandeira da Palestina no forno de uma câmara de gás que, pela sua inscrição, remete campo de extermínio em Auschwitz. O objeto é equiparar as políticas do Estado de Israel com as ações nazistas. Na outra imagem, Netanyahu aparece dentro de uma estrela de Davi com sacos de dinheiro. A referência não é às acusações de corrupção que o premier enfrenta, mas sim às antigas teorias da conspiração de que os judeus são detentores das principais fontes de renda do mundo.
Diante de um contexto como esse, os cristãos têm um grande papel a desempenhar, não em uma tentativa de apagar os erros do passado, mas em obediência aos ensinamentos bíblicos. Romanos 11, a passagem mencionada anteriormente, é um texto bastante complexo, com várias possibilidades de interpretação, sobretudo para o termo “todo Israel será salvo” no versículo 26, compreendido de maneiras diferentes pelos teólogos cristãos. Entretanto, se há algo claro nesse texto, além da condenação ao orgulho gentílico, é o fato de que Deus ainda tem planos para o povo judeu e que, perante a ótica divina, eles ainda têm um status especial. Isso pode ser observado nos versículos 28 e 29:
“Muitos do povo de Israel agora são inimigos das boas-novas, e isso beneficia vocês, gentios. No entanto, porque ele escolheu seus patriarcas, eles ainda são o povo que Deus ama. Pois as bênçãos de Deus e o seu chamado jamais podem ser anulados.” (Romanos 11.28, 29 – NVT)
De acordo com o apóstolo, embora a nação judaica como um todo tenha rejeitado Jesus enquanto Messias prometido pelos profetas do Antigo Testamento, eles ainda são amados por Deus por causa das promessas feitas a Abraão. Esse amor especial da parte de Deus pelos judeus é entendido por alguns como um sinal de que no fim dos tempos haverá uma grande conversão deles ao cristianismo. Outros o vêem apenas como uma evidência de que a igreja, o Corpo de Cristo visível, sempre terá em sua composição alguns judeus. Independentemente de como se entende esse trecho das Escrituras, contudo, ele, por si só, deveria ser suficiente para que todos os cristãos se engajassem na luta contra o antissemitismo. Odiar os judeus é odiar a soberania divina e, em última instância, o próprio Deus que escolheu Israel.
No combate ao antissemitismo é necessário mais do que simplesmente ações contra crimes e discursos de ódio. É preciso um filossemitismo, um amor genuíno pelo povo judeu e um grato reconhecimento por todas as contribuições desse povo à humanidade. Isso pode ser demonstrado de diversas formas. Uma delas é afirmando as verdades bíblicas acerca das ligações históricas do povo judeu com a cidade de Jerusalém e com a terra que a partir de 70 d.C passou a ser chamada de Palestina. Embora essa seja uma das bases do sionismo, não significa apoiar de forma irrestrita o Estado de Israel, apenas reconhecer que os judeus, assim como qualquer outro povo, também têm direito a um lar nacional.
Outra maneira é lutando pela liberdade religiosa, a fim de que todos sejam livres para viver de acordo com o que acreditam – ou que tenham o direito de dizer simplesmente que não acreditam. No século 21, esta é, acima de tudo, uma questão de direitos humanos. A livre profissão de fé é um direito assegurado por vários tratados internacionais, ainda que seja diariamente ignorado por governos de todo mundo, atingindo não apenas judeus, mas também cristãos, muçulmanos e muitas minorias religiosas.
Os cristãos, mais do que qualquer outro grupo, têm o dever de liderar este movimento, afinal, devemos aos judeus a nossa própria fé. É deles que vem o nosso Cristo, uma palavra de origem grega para Messias, e também a nossa salvação, como afirma o próprio Jesus no Evangelho de João. Logo, não podemos ficar indiferentes. Como disse a rainha Ester diante do iminente extermínio dos judeus na Pérsia, “Quem sabe não nascemos para um momento como esse?” Talvez o atual cenário do mundo seja uma oportunidade dada por Deus para escrevermos um novo capítulo na história das relações judaico-cristãs. Que não nos calemos!
Igor Sabino é Bacharel e Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), e alumnus do Philos Project Leadership Institute. Realizou trabalhos humanitários em ONGs de Direitos Humanos ligadas à American University of Cairo, no Egito, e pesquisas de campo na Polônia, Israel, Territórios Palestinos, Líbano e Jordânia relacionadas a migrações forçadas e perseguição religiosa.