Em outubro deste ano comemoramos 500 anos de Reforma Protestante. E se há um movimento para o qual as igrejas evangélicas precisam voltar seus olhos imediatamente é este. A Reforma parece ter abordado cada questão da vida, principalmente aquelas que dizem respeito à eternidade. Uma das questões levantadas pelos reformadores é a de que o pecado afetou todas as faculdades humanas. Não há homem que não esteja radicalmente corrompido pelo pecado. Isso significa que todas as áreas de nossas vidas foram profundamente depravadas. Por isso, neste texto abordaremos três aspectos de nossas vidas que foram afetados pelo pecado, mais precisamente quanto ao uso que fazemos deles no culto a Deus.

Como dito acima, três aspectos, ou elementos, legítimos ameaçam constantemente a Igreja do Senhor devido à pecaminosidade do homem. São eles: a tradição, a emoção e a razão. Se usados corretamente, esses elementos são saudáveis a uma comunidade local, que deveria lançar mão deles. Não há igreja que seja saudável e que, ao mesmo tempo, exclua, por exemplo, a razão de seus cultos, ou então que não considere os concílios históricos sobre os quais a Igreja está firmada. Todavia, há um perigo enorme em fazer de qualquer um desses elementos, que são legítimos, algo digno de culto ou elevá-los ao nível das Escrituras Sagradas. Nenhum dos elementos listados acima é digno de tais coisas. Somente a Palavra de Deus tem a autoridade suprema e total sobre a Igreja de Deus.

  • A TRADIÇÃO

A tradição é um excelente elemento, sem o qual nenhuma igreja que não a considere permanecerá saudável por muito tempo. Olhar para o que os pais da Igreja, os reformadores, os puritanos e tantos outros milhares de homens piedosos escreveram é reconhecer a graça de Deus ao dar mestres à Igreja. Por outro lado, ignorar toda a História da Igreja e o que nela foi produzido é pura demonstração de orgulho e soberba. Em todo tempo, devemos olhar com humildade para aqueles que caminharam a mesma caminhada que nós e reconhecer o que eles nos deixaram como legado. Saber sobre a tradicional confessionalidade da Igreja Evangélica é saber o que é, de fato, ser participante dela.

E se há um problema urgente nas igrejas ditas evangélicas no Brasil hoje é justamente sua falta de confessionalidade. Cada dia mais as igrejas têm se esquecido daqueles documentos tão valiosos que nos foram deixados por nossos pais. A igreja evangélica hoje é muito mais anticatólica do que propriamente filha da Reforma. Em nossos arraiais já não se conhece os antigos credos, confissões de fé, catecismos e sínodo produzidos com tanta força e clareza por homens que caminharam com Cristo. E é de extrema importância para a saúde de nossas igrejas que ponderemos sobre esses documentos, pois eles já passaram pelo crivo do tempo e da História e, ainda assim, permanecem de pé, pois foram erguidos sobre o fundamento lançado pelos santos apóstolos e profetas.

O extremo oposto da falta de confessionalidade histórica é quando o uso da tradição é levado às últimas consequências. Neste caso já não se fala mais em tradição, e sim em tradicionalismo. O tradicionalismo é a degeneração da tradição. Ao contrário da tradição, o tradicionalismo não tem sua fundação na santa Palavra de Deus, sua origem está nas superstições humanas. Enquanto a tradição é a fé viva daqueles que já morreram, o tradicionalismo é a fé morta daqueles que ainda estão vivos. No tradicionalismo, não há vida. No tradicionalismo, o que importa é a forma, não o conteúdo. Por inúmeras vezes, Jesus se depara com homens tradicionalistas e denuncia sua podridão espiritual com aparência externa (Mt 15.3,6,9; Mt 23.23-33). A consequência imediata e final do tradicionalismo é o clericalismo – erro que pode ser visto mais claramente na Igreja Católica Romana, que o cometeu no passado e continua a cometê-lo.

  • A EMOÇÃO

O segundo elemento que deve ser considerado é a emoção. A emoção é um elemento muitíssimo piedoso do qual a Igreja deve lançar mão. As Escrituras estão permeadas de momentos em que emoções legítimas se apresentam, e por muitas vezes elas são manifestas por sinais exteriores (Jn 3.5-8; 2Sm 1.11; Mt 5.4). Aliás, a Bíblia não nos proíbe de exteriorizar de forma piedosa um sentimento que, interiormente, é verdadeiro. O que as Escrituras condenam é o ato exteriorizar o que não é verdadeiro, ou fazê-lo por motivos escusos (Is 29.13; Ml 2.13,14; Mt 15.8). O problema de todos os homens, e consequentemente da Igreja neste mundo, é que o pecado nos afetou por completo, e nossas emoções não ficaram de fora.

Embora seja absolutamente saudável o uso da emoção no meio do povo de Deus, há um perigo enorme de se corromper esse elemento santo. Quando corrompida, a emoção deixa de ser útil e passa a ser desastrosa. É o que chamamos de emocionalismo. O emocionalismo é justamente o que foi dito acima: a exteriorização de um sentimento ilegítimo ou o seu uso por motivos ilícitos. O emocionalismo é a elevação da importância sentimental momentânea. O fim último do emocionalismo é trágico: o misticismo – tão presente nas igrejas neopentecostais.

  • A RAZÂO

O terceiro e último elemento a ser considerado é a razão. Obviamente, tudo que nós fazemos, o fazemos como seres racionais. Ao contrário do que muitos pensam, a razão não é o oposto da fé; nossa fé é racional. Paulo, por exemplo, nos convoca a prestarmos um culto racional a Deus (Rm 12.1). Entender as nuances que cercam a fé cristã e as implicações de crer em Cristo é nosso dever como cidadãos do Reino celestial (Lc 14.26-33; 1Pe 3.15; Jd 3). Inclusive, somos chamados a amar a Deus de todo nosso coração, mente, força e entendimento (Mt 22.37). O uso de nossa racionalidade é bom e agradável a Deus, pois reflete nosso Criador, que é racional.

O problema reside em quando esse elemento tão sadio é deturpado, pois, assim como todo o ser humano, a razão também foi corrompida pelo pecado. A deturpação da razão é o que chamamos de racionalismo. Enquanto fazer o uso da razão é fazer o uso da nossa capacidade (ainda que imperfeita) de entendimento lógico, filosófico e teológico, racionalismo é elevar a mente ao status de deus. Os racionalistas excluem de sua fé tudo aquilo que a mente não pode compreender. Eles possuem uma crença totalmente racionalista, excluindo, assim, os mistérios da fé cristã que não conseguimos compreender, mas que são cruciais ao Cristianismo – como a Trindade ou a união hipostática.

O racionalismo é a tentativa inútil de racionalizar Deus. É impossível colocar Deus dentro de nossas mentes. Nem mesmo em toda a eternidade entenderemos perfeitamente Aquele que é “infinito em Seu ser e Suas perfeições” (CFW II.I; 1Co 2.10; Jó 11.7-9; Jó 26.14). É necessário convivermos com a tensão de que sermos racionais não nos torna entendedores de todas as coisas, mas, nem por isso, tais coisas deixam de serem verdades. O racionalismo é um caminho fatal para o materialismo. No materialismo, tudo que é matéria, provável e real aos sentidos humanos pode ser crido. O que não se encaixar nisso deve ser excluído – como, por exemplo, a ressurreição literal e corpórea de Jesus dentre os mortos. Esse foi o principal erro no qual as igrejas históricas que se tornaram liberais caíram no passado e caem ainda hoje.

Vale ressaltar que, enquanto esses elementos santos mantêm uma comunhão perfeita entre si, a degeneração deles é mutuamente excludente, isto é, onde há um, não há o outro. Por exemplo, onde o misticismo faz morada não se tem mais o uso piedoso da tradição. A razão, também, não se faz presente ali por motivos óbvios. Poderíamos, ainda, tomar como exemplo o materialismo. Onde ele se faz presente, há arrogância. Não se pode sentir nada. Todo sentimento (ainda que legítimo) é inferiorizado, humilhado e reprimido. A tradição também não se abriga nesses ambientes; há apenas um amor morto por aquilo que também já morreu. Não se constrói nada a partir da tradição; pelo contrário, destroem o que foi construído por amor a uma suposta racionalidade exaltada (cf. 1Co 1.19-31).

Concluo, portanto, dizendo o que eu disse no início: todos esses elementos são legítimos e devem ser partes integrantes do culto a Deus. Devemos fazer o uso correto da tradição. Nossas emoções devem ser santas, bem como nossa racionalidade deve ser levada cativa à Palavra de Deus (2Co 10.5). O mau uso que se tem feito de qualquer um dos aspectos aqui apresentados torna o culto impuro, idólatra, profano e irreverente, pois toma da Palavra o status de fonte única autoritativa para a Igreja. Cabe a nós nos arrependermos profundamente diante do Senhor por todas as vezes que permitimos que essas coisas tivessem abrigo em nossas igrejas e em nosso coração.

Rafael Almeida. 24 anos, nascido em Passa Quatro – MG. Formado em Redes de Computadores pela Fatec/Cruzeiro – SP. Coordenador dos trabalhos da Igreja Batista Reformada em Passa Quatro – MG. Tem interesse especial em hermenêutica e exegese. Rafael é casado com Ana Cristina.