A narrativa ocidental da Reforma comumente aceita – ela foi um gatilho para muitos desenvolvimentos que fizeram o Ocidente grande (liberdade política, ciência moderna, etc) – tem estado sob uma crescente onda de críticas recentemente. Muitas dessas críticas refletem o fato de que o peso da narrativa ocidental tem se tornado, em geral, muito mais questionável. O estilo norte americano de vida não mais aparenta ser o destino do mundo como um todo, com Rússia, China e Islã apresentando, cada um, visões alternativas da modernidade.
Nesse contexto, o historiador Brad S. Gregory, da Universidade Notre Dame, ofereceu uma contra narrativa detalhada e poderosa em seu importante livro, lançado em 2015, chamado The Unintended Reformation [A Reforma não desejada, em tradução livre] (leia aqui uma resenha em inglês no site The Gospel Coalition), onde ele buscou identificar a origem de muitos dos males da modernidade – especialmente o relativismo moral anárquico e o colapso das fontes tradicionais de autoridade – nas contribuições feitas à cultura ocidental pelos reformadores do século 16.
Extenso apanhado histórico
Neste ano de aniversário, Gregory elaborou uma versão popular do seu trabalho anterior, especialmente focado na (embora não restrito a) vida e contribuição de Martinho Lutero. Rebel in the Ranks: Martin Luther, the Reformation, and the Conflicts That Continue to Shape Our World [Um rebelde no banco dos réus: Martinho Lutero, a Reforma e os conflitos que continuam a moldar o nosso mundo, em tradução livre] é tudo que se pode esperar de Gregory: bem escrito, profundo, às vezes divertido, provocativo, e (sob minha perspectiva) profundamente falho em pontos chave do argumento.
O livro possui quatro capítulos. Os três primeiros são notáveis, abordando o período entre a chamada de Lutero para o debate sobre as indulgências e o final do século 17. No percurso, Gregory fornece uma narrativa resumida dos principais eventos, personalidades e ideias que moldaram a Reforma em toda a Europa ocidental. Esse é um feito impressionante. Não consigo lembrar de um único volume que cubra tal extenso apanhado histórico com tamanha concisão e clareza. Só por isso o livro já merece ser lido por todos que desejam compreender de maneira geral a Reforma e ser capaz de identificar os diferentes lugares e personagens relacionados entre si.
Os problemas realmente surgem no último capítulo, onde Gregory apresenta sua tese: a Reforma foi um fenômeno religioso que paradoxalmente conduziu à secularização da sociedade.
Consequências não desejadas
Talvez o mais significativo problema com a tese de Gregory seja o conceito de consequência não desejada que forma a base de sua teoria da Reforma e a secularização. Esse é um conceito bastante elástico pela sua própria natureza.
Por exemplo, dado o modo que os judeus foram transportados para Auschwitz, alguém poderia argumentar que o Holocausto foi uma consequência não desejada da invenção da locomotiva a vapor. Sendo assim, George Stephenson tem alguma responsabilidade por aquele acontecimento? Em um sentido meramente técnico, sim. Se não há meios de transporte em massa, não há assassinato em massa. Mas em um sentido moral significativo, de jeito nenhum. Stephenson disponibilizou uma pré-condição necessária, mas não suficiente.
Então qual a utilidade do conceito “consequência não desejada” quando aplicado à conexão entre os reformadores e, digamos, a subjetividade do expressivo individualismo moderno, que está destruindo a moralidade ocidental tradicional na mesma velocidade com que eu digito este texto?
Se o argumento de Gregory é meramente para traçar conexões narrativas entre um e outro, então sim, pareceria legítimo focar nesse tema. Mas o tom esmagador da narrativa de Gregory é para forçar o significado do conceito e fazer os reformadores serem (ainda que de forma inconsciente) os vilões da história. O conceito, então, deve carregar um peso moral que sua elasticidade não pode suportar.
Quando começar?
Isso também indica o problema inerente ao desafio perene dos historiadores: o ponto de partida da narrativa. Toda narrativa histórica deve começar em algum lugar e, dessa forma, produz um tanto de relativização da importância para o que tenha ocorrido anteriormente. Ainda, deve-se estar atento ao fator potencialmente distorcido, e não permitir que ele exerça indevidamente uma influência decisiva sobre as conclusões.
Essa prática é particularmente relevante se relacionada à Reforma. Estudiosos como Gregory, que querem culpar a Reforma pelos problemas dos anos seguintes, começarão a identificar os problemas que preocuparam a igreja no início do século 16 como sendo meramente morais ou administrativos, não teológicos. Eles, então, apresentarão o Concílio de Trento como a solução e o Protestantismo como desnecessário e como uma aberração teológica. Mas se você começar a história antes de 1517, essa narrativa é insustentável.
Primeiramente, está sedimentado o entendimento de que a teologia de Lutero possui certa continuidade com seu treinamento medieval, herdeiro do pensamento de Occam. Sem Occam não teríamos Lutero. Por isso, se o secularismo é uma consequência não desejada de Lutero, então Lutero é apenas um aspecto de consequência não desejada da teologia medieval mais recente. Portanto, se nós aceitamos (pelo bem do argumento) consequências não desejadas como uma categoria útil, quem é realmente culpado pela secularização? O homem de Wittenberg ou os filhos fiéis da igreja medieval que o ensinaram?
Em segundo lugar, narrativas como a oferecida por Gregory, que culpam os reformadores pelo colapso da igreja, são expostas no ambiente de um ponto de vista relativamente romântico da Idade Média, com um deficiente, e um tanto idealista, entendimento de mudanças históricas.
Com efeito, a igreja medieval manteve sua unidade não por causa do magistério, mas por causa da interligação entre as realidades eclesiástica, política e social. Tratava-se de uma união heterogênea de igrejas locais vinculadas a Roma. Ela prosperou devido à sua conexão com as elites política e social. Não houve embaraço por parte das massas pela simples razão de se ter feito pouco esforço para cristianizá-los profundamente, e as massas, em retorno, não se importavam suficientemente para abalar o status quo.
Conforme os elementos desse arranjo começaram a ruir, problemas sucederam. E essa queda foi relacionada tanto aos problemas advindos com a alternância de poder na Europa, causada pelo aumento das relações comerciais, quanto a qualquer coisa que Lutero pudesse fazer. A isso devemos acrescentar a descoberta, no final do século 15, de uma terra vasta e fértil, entre Europa e China, uma descoberta que alimentou a ambição colonial e fez nascer o poder naval, e, aqueles com acesso a ele, ainda mais relevantes que em qualquer época anterior.
Em poucas palavras, essas condições tornaram o mundo do início do século 16 preparado para uma ampla transformação política, e em razão da conexão entre Estados e Igreja, seria inevitável acontecer consequências traumáticas no âmbito eclesiástico.
“Lutero não é a causa de uma crise de autoridade, mas uma resposta a ela.”
Em terceiro lugar, utilizando um exemplo específico, Gregory enxerga corretamente a Disputa de Leipzig, de 1519, como central ao desenvolvimento de Lutero. O brilhantismo de John Eck durante o debate forçou Lutero a conceder – e talvez perceber pela primeira vez – que a questão entre eles era relacionada a autoridade. Com a percepção de Lutero de que o papado e os concílios erraram, ele foi forçado a fazer um retorno à Escritura somente. Porém, Gregory falha em reconhecer que Lutero está respondendo à relevância teológica de realidades históricas. O final do século 14 e o início do século 15 estiveram envoltos por múltiplos papados simultâneos, uma questão resolvida apenas pelo Concílio de Constança – uma entidade imperial, não eclesiástica.
Em outras palavras, pode-se encarar corretamente o movimento de Lutero em direção à Escritura como desastroso. Mas também é necessário recordar que aquele movimento não precipitou uma crise de autoridade. Não, ele foi uma resposta a uma crise de autoridade já existente. A realidade de Constança certamente quebrou qualquer noção de uma visão do papado (para usar uma frase anacrônica) “Ultramontânico”[1]. Pode-se até argumentar que a Escritura sozinha é uma base inadequada para reconstruir a fé, mas dificilmente se pode culpa-la pelo colapso de autoridade da Igreja. A Igreja já havia atingido tal ponto em níveis teológico e teórico no início do século 15, embora, na prática, pudesse manter sua autoridade, após Constança, mais em termos políticos e terrenos.
Repetindo: Lutero não causou a crise de autoridade, mas respondeu a ela. E Trento dificilmente pode ser visto como a solução para uma igreja corrupta, simplesmente porque em termos práticos a história da igreja no final do século 14 e no início do século 15 trouxe a noção de que as autoridades papal e conciliar já estavam profundamente problemáticas em um nível teológico. Pode-se ver Trento como uma solução elegante somente se ignoradas as contradições em que se apoiavam o papado e Trento àquela época, ou, alternativamente, historicizando a autoridade da igreja e fazendo-a produto de um processo histórico nebuloso. E qual seriam as consequências não desejadas desse último movimento? Pode-se questionar.
Importância do contexto social
E ainda há mais aspectos da narrativa do secularismo que Gregory ignora. Sim, ideias têm consequências. Mas elas apenas podem ter consequências dentro da extensão permitida pelas condições sociais, culturais, econômicas e tecnológicas que as tornam plausíveis, praticáveis e atrativas. E às vezes essas condições materiais possuem mais condições de conduzir a uma mudança ideológica que as ideias por si só.
Assim, por exemplo, o muito propalado flagrante caos desencadeado pelo princípio das Escrituras de Lutero é frequentemente visto como um resultado direto do Protestantismo e como algo conducente ao “penetrante pluralismo interpretativo”, no coração da impotência da igreja moderna. Mas é? Estudos sobre alfabetização na América do Sul nos anos 1960, e um recente relatório da UNESCO, demonstram que há uma importante conexão entre o aumento dos índices de alfabetização e uma autoconsciência política. Em outras palavras, quando uma sociedade se torna mais letrada, aumentam grandemente as chances de as estruturas de autoridade, que supõem baixa alfabetização, serem desafiadas.
Esse é o muito do século 16. A teologia de Lutero foi um distinto resultado de sua personalidade, diante das circunstâncias. Mas a imprensa e o aumento do comércio e dos negócios certamente fizeram com que as estruturas de autoridade do mundo medieval fossem postas sob forte tensão, com ou sem Lutero, Zuínglio, ou seus co-beligerantes. Ensine as pessoas a ler e elas vão questionar a autoridade, e discutir sobre os significados dos textos.
Novamente, para retornar a um ponto anterior: a estabilidade da igreja medieval dependia de condições materiais que estavam sob uma massiva transformação no final do século 15 e no século 16, devido a mudanças econômicas, às viagens de descobrimento e à imprensa. Independentemente de Lutero, o papado medieval não poderia continuar como estava. Mudanças – mudanças traumáticas – de certa forma eram inevitáveis.
As partes boa e ruim da modernidade
Gregory conclui com um lamento acerca da eleição de Donald Trump, mas, fazendo isso, evidencia mais um problema em sua abordagem. Não se pode lamentar coisas da modernidade que se desaprova sem refletir sobre suas conexões com aquilo que nós desejamos afirmar.
Democracia sempre carrega consigo o risco de um Trump. Mas eu prefiro correr esse risco, em detrimento de um sistema que viabiliza um Kim Jong Um ou um Xi Jinping. Eu prefiro saber ler e escrever e estar submetido ao risco de um penetrante pluralismo interpretativo, em detrimento de ser iletrado. Eu prefiro viver em um mundo de transporte barato, sistema de aquecimento central e antibióticos, apesar de esse mundo estar sempre suscetível ao desencantamento, ou pior, à guerra nuclear e a um genocídio facilitado pela tecnologia. Mas, no que concerne à modernidade, você não pode ter a parte boa sem estar sempre sob o risco da parte ruim.
Por todas essas críticas, entretanto, eu repito o que disse no início: esse é um livro provocativo e bem escrito, que eu vou usar em sala de aula como forma de levar os estudantes a pensarem sobre as conexões existentes entre a Reforma e a modernidade ocidental. Parafraseando um comentário de Lutero sobre Erasmo: o autor deve ser elogiado por não desperdiçar nosso tempo com trivialidades, mas colocar o dedo no ponto vital, a dobradiça a partir da qual tudo se movimenta. A história contada é profundamente falha, mas talvez esse aspecto a faça digna de ser lida.
[1] Expressão utilizada para se referir à teologia romana, em referência à sua posição geográfica além das montanhas (alpes), do ponto de vista de quem está na França ou na Alemanha (N. T.).
Texto original aqui.
Tradução: João Guilherme