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Introdução

Um dos principais temas a serem visitados e discernidos em qualquer escopo teológico, seja ele de que matriz for, é o tema da morte de Cristo. Desdobramentos provenientes deste assunto como o significado, eficácia e extensão da expiação[1]; as razões que levaram Deus-Pai a oferecer graciosa e voluntariamente Cristo, O Unigênito, à morte e morte de cruz[2]; as relações da morte de Cristo com as doutrinas da justificação pela fé[3], da união do crente com Cristo[4], da intercessão de Cristo pelos santos[5] e da Trindade[6]; constroem um edifício de motivos fundamentais pelos quais a morte de Cristo e suas consequências são tão importantes para a construção de qualquer teologia, credo ou confissão de fé.

É inquestionável o impacto que a forma como se entende o significado e consequências da morte de Cristo tem sobre todo corpo doutrinário que se constrói tanto individualmente como comunitariamente em nossa experiência de fé cristã. A forma como compreendemos essa doutrina tem ligação direta, por exemplo, com a eclesiologia de uma igreja. Os métodos adotados pela igreja para evangelizar pessoas descrentes e a maneira como deve apresentar constantemente a mensagem do evangelho aos crentes já pertencentes à comunidade e engajados em seus cultos e serviços podem ser dramaticamente distintos, dependendo da visão que se adota da morte de Cristo.

É possível, também, a partir do que se entende da morte de Cristo, que se construa visões divergentes e até mesmo antagônicas quanto a assuntos concernentes, por exemplo, ao que verdadeiramente são os decretos de Deus, ou em até que ponto a Trindade agiu em harmonia, coerência e até mesmo racionalidade no tocante à concepção, aplicação e consumação do plano trinitariano de salvar pecadores.

É possível, ainda, formular diferentes posicionamentos a respeito da veracidade ou não da morte substitutiva e penal de Cristo em lugar de pecadores, questão tão central que acabaria também por tocar fundamentalmente na doutrina da justificação pela graça mediante a fé. Dependendo da forma como se olha a obra de Cristo na cruz, abre-se, ainda, margem para distintos posicionamentos no tocante ao sacerdócio de Cristo e sua posição de intercessor dos crentes à destra do Pai, e de nossa união mística com Cristo através da pessoa do Espírito Santo.

Entende-se que todas as subdivisões e temáticas apresentadas acima como tendo alta importância para a vida da igreja como comunidade e do cristão como indivíduo temente a Deus, de forma que não é saudável que temáticas de tamanha centralidade e relevância para o bom desenvolvimento da fé estejam imersas em controvérsias que podem afetar cabalmente o valor positivo e insubstituível que a compreensão bíblica de tradição reformada confere a cada um desses pontos.

Compreender o real motivo, significado e consequências da morte de Cristo é tema central para qualquer cristão que teme ao Senhor e tem as Escrituras Sagradas como regra de fé e prática. A tradição cristã reformada possui um robusto e mui coerente ensino a respeito desse tema, que deve ser ensinado constantemente aos crentes em Cristo de toda ordem, pois compreender a morte de Cristo, em suma, é compreender o coração do evangelho, de modo que compreender o evangelho de forma correta ou equivocada refletirá severamente em práticas frutíferas ou não na vida de cada cristão.

Apresentando as principais perspectivas doutrinárias

Talvez aqui estejamos diante do cerne do problema, como disse o proeminente teólogo americano do século XIX, A. A. Hodge: a doutrina da Expiação é evidentemente o elemento central e principal da doutrina da Justificação[7]. Compreender o real significado do que é o ato de fazer expiação pelos pecados de outrem pode fundamentar de maneira cabal as nossas conclusões sobre o poder e as consequências inerentes à morte de Cristo, nosso Senhor. Claro que não temos a pretensão de esgotar um assunto tão denso e glorioso em nossa breve abordagem, o intuito da presente argumentação é lançar mais luz a um tema tão controverso ao longo da história da igreja, que deve ser sempre alvo de extensas pesquisas para ser melhor compreendido pelos cristãos da igreja de Jesus do século XXI[8].

Predominantemente, na teologia contemporânea duas formas de compreender a morte de Cristo e seus efeitos sobre nós são consideradas: a primeira trata-se de uma morte substitutiva, um preço pago a Deus-Pai pela redenção dos pecados de alguém, o que consequente e infalivelmente liberta uma pessoa da pena que deveria pagar, ou seja, não apenas possibilita a salvação, mas de fato expia a culpa do pecador e o redime para glorificação na eternidade, mediante o selo do Espírito Santo, aplicado ao respectivo pecador como penhor de sua salvação[9]. A segunda trata-se de uma morte não substitutiva, aquilo que R.C. Sproul vai chamar de “teoria governamental”, que sugere que Cristo não pagou na cruz o preço real pelo pecado da humanidade, mas que sua morte foi um substituto significativo da punição dos homens. A morte de Cristo teria sido apenas algo pelo qual Deus demonstrou seu desprazer para com o pecado para que posteriormente pudesse estender perdão aos homens[10].

É importante dizer que não estamos estabelecendo nenhuma ligação formal entre qualquer corrente apresentada abaixo e a teoria governamental descrita há pouco. Entretanto, é necessário ressaltar que uma das correntes apresentadas a seguir, na prática, embora não na teoria, acabará corroborando a ideia de que a cruz não é garantia irrevogável de redenção para o pecador. Abaixo apresentaremos uma breve introdução ao pensamento arminiano e quais as relações que esta linha de interpretação traça entre a morte vicária de Cristo e a vida do pecador, e também uma breve abordagem do pensamento reformado clássico e sua compreensão das relações entre a morte expiatória de Cristo e a vida cotidiana do crente em Cristo.

  • Breve introdução ao arminianismo clássico

Com base no documento datado de 1609, intitulado Remonstrância, que representava uma tradição contrária à posição clássica da época, que hoje é conhecida como reformada ou calvinista, e nos escritos do reconhecido teólogo arminiano Roger Olson, apresentamos a mais conhecida posição dentro do arminianismo, que defende a expiação como sendo universal nos seguintes moldes: Jesus ofereceu-se na cruz a fim de propiciar a salvação ao mundo inteiro. Os arminianos dessa matriz acreditam que a morte de Cristo na cruz concedeu possibilidade de salvação a todos; mas ela é, de fato, concretizada quando os seres humanos a aceitam por intermédio do arrependimento e fé[11].

Para a teologia arminiana, existe uma condicional entre o fato de Cristo ter entregado sua vida por todos e todos possuírem a vida eterna. A condicional existente nada mais é do que a fé que se é depositada em Cristo Jesus. Deus concede vida eterna aos que creem. É por isso que, no sistema arminiano, muitos não são salvos. Sobre isso, Roger Olson comenta: Os arminianos, de fato, acreditam que Cristo morreu por todos, mas o benefício de sua morte (colocando de lado a condenação por pecados reais, em contraste ao pecado adâmico) é aplicado por Deus apenas aos que se arrependem e creem[12]. Ele continua:

Se a morte de Cristo satisfez a justiça de Deus para todos, por que todos não são salvos? Armínio responde: ‘Pois os pecados dos que por quem Cristo morreu estavam de tal maneira condenados na carne de Cristo, que eles, por este fato, não estão livres da condenação, a menos que, de fato, creiam em Cristo.’ Em outras palavras, Deus decidiu que os pecados de todas as pessoas fossem expiados pela morte de Cristo, de tal maneira que somente se as pessoas acreditarem em Cristo os seus pecados serão, de fato, perdoados[13].

Roger Olson, abaixo, segue explanando mais detalhadamente como creem os arminianos, especialmente Jacó Armínio:

“Armínio explicou sua própria visão da expiação em seu tratado ‘Examination of. Dr. Perkins’s Pamphlet of Predestination’ (Exame do Panfleto do Dr. Perkins Sobre a Predestinação). No documento ele defendeu que, de acordo com as Escrituras, Cristo morreu por todas as pessoas sem lesar uma única pessoa sequer e que sua morte satisfez as exigências de justiça para os que creem. Ele deu muita atenção a 2 Coríntios 5.19, onde Paulo escreveu que Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo. Armínio também escreveu sobre muitas outras passagens onde ‘mundo’ é mencionado como objeto de amor e vontade de redenção de Deus em Cristo: João 1.29; 3.16; 4.42; 1 João 2.2; 4.14.”[14].

Com a morte de Armínio, quarenta e seis ministros e leigos holandeses respeitados redigiram um documento que ficou conhecido como “Remonstrância”, que resumia a rejeição, por Armínio e por eles mesmos, do calvinismo clássico de cinco pontos. Vejamos o que diz o artigo II da Remonstrância:

Em concordância com isso, Jesus Cristo, o Salvador do Mundo, morreu por todos e por cada um dos homens, de modo que obteve reconciliação e remissão dos pecados por sua morte na cruz; porém, ninguém é realmente feito participante dessa remissão exceto os crentes, segundo a palavra do Evangelho de João 3.16: “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crer, não pereça, mas tenha a vida eterna” e Primeira Epístola de João 2.2:” E ele é a propiciação pelos nossos pecados e não somente pelos nossos, mas pelos de todo o mundo”[15].

Compreende-se, portanto, a partir da tese arminiana apresentada, que não existe uma ligação inequívoca e inseparável entre a morte de Cristo e a garantia da salvação dos pecadores, uma vez que a consumação deste fato depende de uma ação humana que pode ou não acontecer no tempo e na história.

A posição arminiana é de que Deus estabeleceu essa forma, ou método, para expiar pecados. Essa forma ou método compreende uma correlação inseparável entre o sacrifício vicário e a ação livre do pecador para garantia da salvação. A redenção dos pecados estará garantida de uma vez por todas apenas se atrelada a uma ação de fé e arrependimento tomada pelo pecador de forma livre. Caso contrário, ninguém poderá ser salvo.

  • Breve introdução ao pensamento reformado clássico

A tradição reformada clássica compreende que o termo expiação por si só já ilumina muito do que de fato significou a morte de Cristo no madeiro. Expiar tem como significado primário a remoção da culpa[16], se alguém expia a culpa de outrem é como se tivesse oferecido um pagamento substitutivo suficiente e adequado para a extinção da culpa do respectivo culpado. Ao se fazer um breve exame do drama das Escrituras, o preço estabelecido pelo próprio Deus através de sua Lei como pena justa para aqueles que viessem a pecar seria a morte[17], de modo que a única forma de qualquer ser humano livrar-se da justa condenação diante de Deus seria viver uma vida perfeita e isenta de pecados, desde o momento em que se nasce até o momento em que se expira pela última vez.

O fato é que nenhum ser humano ao longo de toda a história da humanidade assim viveu, pelo contrário, as Escrituras atestam que todos os homens pecaram e carecem da glória de Deus[18], que não há ser humano que possa dizer de si mesmo que não possui pecado[19] e que em pecado literalmente fomos concebidos[20]. Isso levanta uma questão de fundamental importância para a compreensão do papel basilar desta doutrina da expiação e também do escopo da mensagem do evangelho como um todo: se para sairmos ilesos da justa condenação daqueles que pecam diante de Deus temos de viver uma vida perfeita, justa e reta, como faremos para alcançar redenção dos nossos pecados já que, como atestado pelas Escrituras, ninguém é justo, todos se extraviaram e carecem da glória de Deus[21]?

As próprias Escrituras nos fornecem o caminho proposto misericordiosa, soberana e graciosamente por Deus-Pai, em compaixão para com seres humanos de todas as eras, tribos, etnias, línguas e nações que, como claramente podemos perceber biblicamente, nada poderiam, podem ou poderão fazer para expiarem suas próprias culpas.

Ele colocaria em prática seu plano de redenção, forjado desde antes da fundação do mundo, oferecendo seu Filho Unigênito como oferta sacrificial e substitutiva em favor daqueles que nele cressem para que assim não perecessem, antes obtivessem vida eterna[22]. Mas o que seria essa oferta? Seria ela penal, sacrificial e substitutiva? Como vimos, a remissão de pecados depende do cumprimento de uma pena como estabelecido pela legislação do próprio Deus, sangue deveria ser derramado, e o significado de sangue nas Escrituras é vida. O pecado cobra como salário a extirpação da vida, ou seja, a morte, de modo que para o cumprimento da pena e satisfação do Legislador Supremo, ofendido, alguém deveria morrer[23].

E este é exatamente o ponto nevrálgico e mais significativo da doutrina da expiação: apenas uma pessoa em toda a história da humanidade seria capaz de cumprir as exigências do Legislador e satisfazê-lo em vida e em morte, e esta pessoa é Jesus, o Homem-Deus, o Cristo Unigênito que cumpre toda a tipologia veterotestamentária que apontava para ele próprio, e aglutina em seu sacrifício vicário na cruz, na plenitude dos tempos, com base numa natureza e vida perfeita que não conheceu pecado algum[24], o papel de sacerdote, ofertante e oferta.

Ele, como sacerdote e ofertante em nosso lugar, oferece a si mesmo, a sua vida e o seu sangue como oferta e pagamento substitutivo da nossa pena. Trata-se de um sacrifício pessoal real, oferecido no lugar de pessoas reais, que garante a essas pessoas reais que pelo sangue de Jesus vertido no calvário, a redenção de seus pecados está garantida[25]. Os papéis dessas dívidas foram cabalmente pagos e cravados no madeiro[26], os pecados estão terminantemente expiados e o sacrifício vicário do Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo[27] fez Deus-Pai propício aos eleitos de todas as eras, que formaram, formam e formarão a Noiva Imaculada e Adornada de Cristo, o Noivo perfeito.

Toda essa argumentação reflete fielmente a abordagem clássica reformada da doutrina da expiação encontrada na Confissão de Fé de Westminster, que, como transcrito abaixo, chancela a ideia de que a ação vicária e expiatória de Cristo tem como finalidade os eleitos de Deus antes da fundação do mundo:

O Senhor Jesus, pela sua perfeita obediência e pelo sacrifício de si mesmo, sacrifício que pelo Eterno Espírito ele ofereceu a Deus uma só vez, satisfez plenamente a justiça do Pai, e para todos aqueles que o Pai lhe deu adquiriu não só a reconciliação, como também uma herança perdurável no Reino dos Céus[28].

Assim como assegurado pela CFW, o Sínodo de Dort, que foi o primeiro conselho ecumênico realizado pelas Igrejas Reformadas, ocorrido entre Novembro de 1618 e Maio de 1619, na cidade holandesa de Dordrecht[29], também assevera posição uniforme em relação à extensão e eficácia da expiação, como podemos ver abaixo:

Pois este foi o soberano conselho, a vontade graciosa e o propósito de Deus o Pai, que a eficácia vivificante e salvífica da preciosíssima morte de seu Filho fosse estendida a todos os eleitos. Daria somente a eles a justificação pela fé e por conseguinte os traria infalivelmente à salvação. Isto quer dizer que foi da vontade de Deus que Cristo por meio do sangue na cruz (pelo qual Ele confirmou a nova aliança) redimisse efetivamente de todos os povos, tribos, línguas e nações, todos aqueles e somente aqueles que foram escolhidos desde a eternidade para serem salvos, e Lhe foram dado pelo Pai. Deus quis que Cristo lhes desse a fé, que Ele mesmo lhes conquistou com sua morte, junto com outros dons salvíficos do Espírito Santo. Deus quis também que Cristo os purificasse de todos os pecados por meio do seu sangue, tanto do pecado original como dos pecados atuais, que foram cometidos antes e depois de receberem a fé. E que Cristo os guardasse fielmente até ao fim e finalmente os fizesse comparecer perante o próprio Pai em glória, “sem mácula, nem ruga” (Ef 5:27)[30].

Entende-se, com base na CFW e nos Cânones de Dort, que a perspectiva reformada aponta uma relação intrínseca e inquebrável entre a expiação vicária de Cristo e a redenção final do pecador, de modo que a ação de fé e arrependimento do pecador não são autônomas ou descoladas do ato salvífico de Cristo no calvário, antes, e de forma cabalmente antagônica à posição arminiana, dependem invariavelmente deste ato vicário para que possam ocorrer de fato no tempo e na história.

É importante que se perceba que a nomenclatura e até mesmo a estrutura da doutrina utilizadas pelas duas linhas apresentadas são basicamente bem parecidas, nota-se que ambas defendem um processo salvífico com base numa ação conjunta do sacrifício vicário de Cristo na cruz, somado a uma ação de arrependimento e fé do pecador neste Cristo crucificado. Entretanto, existe uma diferença sutil, mas determinante para uma crassa diferença no processo de consumação da salvação em Cristo.

Enquanto o arminianismo defende a ausência de uma ligação inseparável entre o sacrifício vicário de Cristo e o ato de arrependimento e fé do pecador, que são apresentados como iniciativas livres do ser humano; o pensamento reformado, ao mesmo tempo em que defende a salvação com base na morte de Cristo, pela graça, mediante o arrependimento e a fé, defende também que essa graça de se arrepender e crer é algo que só se alcança por causa do sangue derramado por Cristo no Calvário. Em suma, é pelo fato de Cristo ter morrido e nos lavado de nossos pecados que nossa salvação nos é garantida e aplicada pelo Espírito Santo no tempo e na história.

Ligações inequívocas da doutrina da expiação a outras doutrinas centrais da fé cristã.

Existem diferentes nuances que podem ser adotadas ao longo da pesquisa e do estudo desta tão robusta doutrina, uma das principais é a chamada extensão da expiação, entretanto faz-se necessário ressaltar que não é esta exatamente a vertente principal que temos como objetivo em nossa abordagem. Nosso foco primeiro, então, é apontar quão incoerente e danosa é para inúmeras doutrinas centrais da fé cristã a sustentação de uma doutrina da expiação que não seja a doutrina da expiação definida[31].

A Bíblia Sagrada assume como inseparável do sacrifício vicário expiatório de Cristo na cruz, alguns vitais benefícios e aplicações destes benefícios na vida real de todos aqueles que creem no Filho de Deus. Citaremos brevemente alguns: o benefício da justificação pela graça mediante a fé[32], o benefício da reconciliação do pecador com Deus[33], o benefício da purificação e santificação do pecador[34], o benefício da adoção do pecador por Deus-Pai[35] e o benefício da segurança do pecador até a segunda vinda de Cristo[36].

Tudo isso torna um tanto quanto complexa a aceitação de uma doutrina da expiação onde Cristo, ao que parece, não removeu pecado real algum de pessoa real alguma, não substituiu de fato e de verdade pecador algum em seu sacrifício penal e vicário no Calvário; onde o sacrifício de Cristo não confere a absolutamente ninguém a garantia de salvação, antes provê apenas a possibilidade de salvação, que será obtida ou não, em última instância, pela decisão de um duvidoso livre-arbítrio humano[37]; onde a justificação pela graça mediante fé tem seu mecanismo central que diz respeito à imputação da vida e morte perfeitas de Cristo sobre a cabeça do pecador eleito, tenazmente ferido, pois é mediante o sacrifício substitutivo de Cristo que temos garantida nossa justificação que se nos é imputada pela graça mediante a fé[38]; onde a reconciliação não depende mais do ato gracioso e salvífico de Cristo no Calvário; onde a purificação, santificação, adoção e glorificação do pecador eleito não estão mais garantidas pelo decreto do Pai, por Cristo mediante seu sacrifício e pelo Espírito Santo como penhor de nossa salvação, antes, tudo isso repousa na performance e na capacidade humana de cumprir determinadas tarefas, a fim de alcançar por si mesma a salvação do homem que, a bem da verdade, elege-se a si mesmo para salvação.

O significado e desdobramentos da doutrina da expiação, também podem ser encontrados e fundamentados sobre terminologias recorrentemente encontradas nos textos bíblicos, que são usadas para explicar este significado e desdobramentos, respectivamente. Citaremos algumas das mais significativas:

Redenção: trata-se de um termo que significa comprar de volta[39]. É abundantemente utilizado nas Escrituras neotestamentárias para atestar que Deus-Pai em Cristo nos redimiu pra si, nos comprou de volta de nosso estado caído de trevas e morte espiritual. Por exemplo, o apóstolo Pedro escreveu:

Sabendo que não foi com coisas corruptíveis, como prata ou ouro, que fostes resgatados da vossa vã maneira de viver que por tradição recebestes dos vossos pais, mas com o precioso sangue de Cristo, como de um cordeiro imaculado e incontaminado, o qual, na verdade, em outro tempo foi conhecido, ainda antes da fundação do mundo, mas manifestado nestes últimos tempos por amor de vós; e por ele credes em Deus, que o ressuscitou dentre os mortos, e lhe deu glória, para que a vossa fé e esperança estivessem em Deus Purificando as vossas almas pelo Espírito na obediência à verdade, para o amor fraternal, não fingido; amai-vos ardentemente uns aos outros com um coração puro; sendo de novo gerados, não de semente corruptível, mas da incorruptível, pela palavra de Deus, viva, e que permanece para sempre[40].

O Apóstolo Paulo, por sua vez, disse: Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se maldição por nós; porque está escrito: Maldito todo aquele que for pendurado no madeiro[41]. Por fim, o Apóstolo João em Apocalipse diz: porque foste morto, e com o teu sangue nos compraste para Deus de toda a tribo, e língua, e povo, e nação;[42]. Fica evidente que a linguagem bíblica atesta a ligação inseparável entre o sangue de Cristo vertido no calvário e a redenção de seu povo eleito antes da fundação do mundo.

Propiciação: propiciação é um termo religioso que significa desviar a ira[43]. A ideia da propiciação revela a ira de Deus contra o pecador, mas também revela como outra pessoa pode carregar essa ira sobre si em lugar do culpado. A doutrina da propiciação nos garante como o sacrifício expiatório de Cristo desviou a ira de Deus dos pecadores diretamente para a cabeça de Cristo no calvário, de modo a fazer Deus-Pai propício a pecadores indignos, porém graciosamente amados e justificados pela Trindade. Montgomery Boyce e Grahan Ryken na obra As Doutrinas da Graça – Resgatando o Verdadeiro Evangelho, nos lembram que o apóstolo Paulo usa o termo propiciação em Romanos 3.25a NVI, quando diz: Deus o ofereceu como sacrifício para propiciação mediante a fé, pelo seu sangue, demonstrando a sua justiça. A expressão “sacrifício para propiciação” é a tradução da palavra grega hilasterion que significa propiciação[44]. O fato é que aquele que confessa Cristo como Senhor e arrepende-se de seus pecados, não tem mais sobre si a ira justa de Deus, mas pela morte de Cristo, tem agora um Deus propício, que garante sua redenção de uma vez para sempre.

Reconciliação: reconciliar significa unificar ou estabelecer paz entre partes em conflito[45]. O Apóstolo Paulo faz uso desta terminologia ao dizer em II Co 5.18-19 NVI: E tudo isto provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por Jesus Cristo, e nos deu o ministério da reconciliação; isto é, Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não lhes imputando os seus pecados; e pôs em nós a palavra da reconciliação. A linguagem bíblica, mais uma vez, não deixa dúvida sobre o poder e eficácia do sangue de Cristo vertido no madeiro agora no que diz respeito a reconciliar as partes que estavam em guerra. Não é razoável pensarmos que Deus nos reconciliou consigo mesmo em Cristo, mas ainda assim continuamos em guerra com Ele. Se temos a reconciliação com o Pai em Cristo, e assim como o apóstolo falou, a estes reconciliados foi dado o ministério da reconciliação, é impossível que outra realidade que não a da paz esteja em vigor. Uma reconciliação que não reconcilia nada poderia ser considerada como algo que merecesse crédito? Aliás, poderia ser considerada uma doutrina bíblica séria e confiável?

Estabelecendo contrapontos e apontando incoerências

Compreende-se que teologias reformada e arminiana muito provavelmente encontrem seu ponto de discordância mais agudo exatamente na questão abordada pelo presente artigo, ou seja, a doutrina da expiação, suas causas, significado e desdobramentos. As formas como cada vertente percebe a doutrina são significativamente opostas, de modo que as consequências de se crer de uma forma ou de outra são igualmente bastante divergentes, até mesmo antagônicas. O Brasil é um país em sua maioria formado por igrejas são de tradição arminiana: pentecostais, neopentecostais, metodistas, batistas em sua maioria, formam grande parte da tradição evangélica em nosso país, e todos eles predominantemente adotam o arminianismo como sistema teológico vigente. Nossa tese no presente artigo é de que existem problemas robustos que são gerados para a teologia de qualquer igreja quando esta adota uma doutrina da expiação que não compreende a perspectiva histórica reformada como premissa em seu corpo confessional de doutrinas. Detalharemos a partir deste momento alguns destes principais problemas apresentando doutrinas cardiais da fé cristã que são terminantemente solapadas ou transmutadas de seus significados clássicos:

  • Desarmonia e incoerência intratrinitariana

Para a Teologia Reformada o ato salvífico trinitário é uma construção harmônica planejada e executada em comum acordo pelas três pessoas da Trindade em direção a um só objetivo, que é o de salvar pecadores. O Pai não propõe algo que o Filho ou o Espírito Santo estariam em desacordo, o Filho não executa qualquer ação onde Pai e o Espírito estariam em desacordo e o Espírito, concordando com a simplicidade[46] e harmonia trinitariana, tampouco aventurar-se-ia a agir isolada ou descompromissadamente do conselho intratrinitariano[47].

Ocorre, porém, que ao adotar-se o sistema arminiano apresentado, para interpretação da doutrina da expiação, uma fenda nessa harmonia entre as três pessoas da Trindade é gerada, pois, independentemente da forma como se compreende a doutrina da predestinação, arminianos e reformados concordarão com o conceito bíblico de que serão os predestinados antes da fundação do mundo que serão salvos[48], seja isto com base na presciência ou no eterno decreto de Deus.

Pois bem, se os dois grupos compreendem que todos os indivíduos sem exceção, de todos os lugares, de todas eras, não serão salvos por Deus, e que haverá um grupo de salvos e um grupo de não salvos, poderíamos levantar algumas perguntas no tocante a economia da Trindade adotada pelo arminianismo confessado por estes grupos de irmãos evangélicos, são elas:

  • Por que Deus-Pai em seu eterno decreto da predestinação não predestinou todos os homens, de todas as eras, sem exceção, para serem salvos em desarmonia com o que Cristo fez no Calvário mediante sua expiação vicária por todos os homens sem exceção, de todas as eras?
  • Por que Deus-Pai haveria de requerer expiação dos pecados de todos os homens, de todas as eras, sem exceção, se ele mesmo não os predestinou para tal fim?
  • Por que Cristo proveu expiação vicária no Calvário para todos os homens, de todas as eras, sem exceção, se a predestinação de Deus-Pai para a vida eterna não contemplou todos os homens?
  • Por que Cristo proveu expiação vicária para todos os homens sem exceção, de todas as eras, sendo que o Espírito Santo não aplicaria os benefícios desta expiação a todos os homens de todas as eras, sem exceção?
  • Por que o Espírito Santo, em desarmonia com o que fez Cristo, não aplicou as bênçãos da expiação vicária em todos os homens, sem exceção, de todas as eras, concedendo-lhes graciosamente o arrependimento e o dom da fé, convencendo-os do pecado da justiça e do juízo, se foi exatamente esta a vitória alcançada na cruz do Calvário através da morte de Cristo Jesus?
  • Por que homens e mulheres ainda serão condenados por Deus Pai ao inferno sendo que Cristo expiou os pecados de todos os homens, sem exceção, de todas as eras, tendo em vista que a incredulidade humana também é um pecado que fora expiado por Cristo no Calvário?

Todas estas perguntas suscitam uma problemática desarmonia entre as três pessoas da Trindade. É como se Cristo não estivesse de acordo com os decretos de Deus Pai e com a atitude redentora de aplicação de salvação do Espírito Santo nos seres humanos. É como se Deus Pai não estivesse em harmonia com o planejamento de Cristo Jesus em prover expiação dos pecados de todos os homens, e é como se o Espírito Santo não estivesse em harmonia com a morte substitutiva de Cristo em favor de toda a raça humana efetuada na cruz de uma vez para todo sempre.

Essa desarmonia é um grande problema, pois pode suscitar uma ideia perniciosa de supostos desacordos entre as três pessoas da Santíssima Trindade. Pode também colocar em cheque o poder expiatório do sacrifício vicário de Cristo no Calvário, e mais, podemos dar oportunidade a antigas heresias que surgiram na história da igreja como arianismo, gnosticismo ou o triteísmo. Justamente no combate a possibilidades como estas, Robert Leftahm diz:

A doutrina da expiação definida afirma que em concordância com o amoroso decreto eterno do Deus triúno, Cristo, o Filho, assumiu a natureza humana na encarnação e se ofereceu ao Pai através do Espírito Santo para fazer expiação por seu povo eleito. Vinculado a isto está uma conexão indestrutível entre a Santa Trindade, a encarnação do Filho e a expiação. No cerne dessa conexão está a doutrina da indivisibilidade do ser e atos do Deus triúno[49].

Resta-nos para evitarmos tamanhos inconvenientes doutrinários no tocante a harmonia e união da Santíssima Trindade, que podem trazer grandes danos à igreja como comunidade e aos crentes como indivíduos, adotarmos o antigo conceito reformado a respeito da expiação vicária de Cristo encontrado nos Cânones de Dort e nas Confissões de Fé Reformadas.

  • O significado do termo expiação é esvaziado em seu âmago

O termo expiação por si só significa remoção da culpa e unificação, ou reconciliação, ou união[50]. O ato de expiar os pecados dos pecadores levado adiante cabalmente por Cristo na cruz, implica em que Ele tomou estes pecados sobre si, morreu a morte que estes pecados exigiam, no lugar destes pecadores, ou seja, substituindo-os e pagando em seus lugares a pena que eles mereciam. Em suma, o caráter da expiação é penal e substitutivo. Cristo Jesus absorve sobre si a culpa e a pena vindicada pelo legislador de modo a livrar o expiado de qualquer dívida perante o tribunal, daquele momento em diante ele está livre.

Ao assumir-se este pressuposto, existem dois caminhos: ou Cristo fez expiação por todos os homens sem exceção de todas as eras, ou seja, removeu a culpa e promoveu a reconciliação destes homens com o Criador; ou Cristo fez expiação por todos os homens eleitos de todas as eras. O que torna-se impossível, ilógico e incoerente é aceitar-se uma expiação vicária nos termos bíblicos do Antigo e do Novo Testamento e ainda assim desejar-se manter a ideia de que Cristo expiou os pecados de todas as pessoas, sem exceção, de todas as eras, mas nem todas as pessoas, sem exceção, de todas as eras, tiveram suas dívidas pagas, seus pecados apagados e sua redenção garantida.

Além de ilógico e incoerente, sustentar que Cristo expiou os pecados de toda humanidade, mas que esta expiação não foi suficiente e poderosa para expiar os pecados, de uma parcela incontável de pessoas na história da humanidade tendo sido sobrepujada pela vontade humana é no mínimo temerário, resultado de uma reflexão superficial do que realmente quer dizer esta doutrina[51]. Diante de tal argumentação, algumas perguntas precisam ser feitas:

  • Se Cristo expiou os pecados de todas as pessoas, sem exceção, em todas as eras, por que algumas pessoas tiveram seus pecados apagados e a salvação garantida, ao passo que outras foram condenadas tendo sendo alvo do mesmo sacrifício expiatório vicário?
  • Se é a incredulidade humana o motivo da condenação, teria sido então, o pecado da incredulidade o único pecado não expiado por Cristo no madeiro?
  • Se é o ato de crer, partindo do pressuposto que a fé não é um dom dado por Deus, o que diferencia quem será ou não salvo, poderíamos dizer que o ato humano autogerado de crer é mais poderoso do que o ato divino da Trindade de salvar?
  • Se Cristo já expiou os pecados de todos os homens, sem exceção, em todas as eras, é plausível afirmar que os pecadores que serão condenados terão de pagar uma pena que supostamente já fora expiada, pela segunda vez?
  • Se a morte expiatória de Cristo não garante a salvação de nenhum ser humano, podemos afirmar então que ela não é penal, tampouco substitutiva? Sendo assim, biblicamente, de que espécie de expiação vicária estamos falando?

 

  • Jesus Cristo falha em sua missão sacerdotal e intercessora

Um outro aspecto vital da fé cristã histórica que é aviltado temerariamente pela a abordagem clássica arminiana da doutrina da expiação é a doutrina de Cristo como nosso Sumo Sacerdote[52]. A doutrina compreende o papel sacerdotal de Cristo não apenas como aquele que se oferece a si mesmo como oferta sacrificial, mas garante que a oferta oferecida, ou seja, sua própria vida, cumprirá o papel a que foi designada: garantir a vida eterna de todos aqueles pelos quais Cristo verteu seu sangue no madeiro, Stephen J. Wellun, diz:

O papel de Cristo como sumo sacerdote é um todo. É um só movimento unificado da graça para com a humanidade pelo qual ele assume nosso lugar em obediência ao Pai, no ato de fazer expiação por nossos pecados e conduzir-nos a Deus. Ele deixa bem claro que ora por nós, além de morrer por nós. Esse é um tema dominante em sua oração como sumo sacerdote ao Pai em João 17. Nessa oração, ele diz ao Pai que não ora pelo mundo, mas por aqueles a quem o Pai lhe deu… sua intercessão é limitada. Ele ora pelos seus, e não pelo mundo. Segue-se que sua morte expiatória visa aos que o Pai lhe deu, e não a todos de forma indiscriminada. Se vemos a intercessão como particular e a cruz como universal, estamos postulando uma ruptura no coração da obra de sumo sacerdote de Cristo[53].

Existe uma multiplicidade interna de papéis e ações em Cristo, que são planejadas, coerentes, interdependentes e imutáveis. Cristo é a oferta, o ofertante, o sumo sacerdote, mas também o mediador e intercessor que assunto aos céus faz com que a obra que Ele mesmo começou possa ser completada diante de Deus-Pai, por meio do Espírito Santo. Mais uma vez, temos um problema de isolacionismo das ações de Cristo como se elas tivessem sido pensadas de forma separada e não dentro de um todo. Enquanto que a primeira incoerência apontada por este artigo compreende uma desarmonia intratrinitariana, esta em questão, compreende um aspecto que diz respeito unicamente à pessoa de Cristo.

Existe uma falha na missão sacerdotal de Cristo, onde além de sua oferta não ter sido plenamente aceita em favor de todos aqueles pelos quais ele ofertou, sua intercessão por aqueles a quem ele se entregou também não terá o efeito desejado, seja pelo fato de Cristo ter morrido por todos sem exceção e intercedido por todos sem exceção e nem todos terem sido salvos, ou, seja por Cristo ter morrido por todos sem exceção e intercedido apenas por alguns o que apontaria uma incoerência em sua obra sacerdotal, e isto tudo por algum motivo desconhecido, já que Deus-Pai não julgou suficientes as súplicas e o propósito salvífico oferecidas e planejado, respectivamente, por Seu Filho Ressurreto e Vencedor.

  • Nossa união mística com Cristo é questionável

Uma das mais belas e revigorantes doutrinas que tem seus fundamentos altamente abalados a partir de uma visão arminiana da expiação é a doutrina da União Mística com Cristo[54]. Por sua obra na cruz, Jesus garante-nos que por meio do seu Espírito em nós, ele viveria também em nós. O Novo Testamento se utiliza recorrentemente da expressão “em Cristo”[55], que aponta para uma união misteriosa efetuada pelo Espírito Santo entre Cristo Jesus e cada membro da família divina convertido pela ação salvífica da Trindade. Estar unido a Cristo é tê-lo vivo e atuante em si mesmo e desfrutar de todos os benefícios que ele tem para dar. É a vida do próprio Cristo em nossa vida que nos garante o duplo benefício da justificação e da santificação, se não estamos em Cristo, nada do que foi feito no madeiro pode, de fato, ter alguma validade para nós. Bem por isso, Cristo garante-nos que sua união mística conosco se dará infalivelmente por intermédio da ação do Espirito Santo, completando assim todo o processo necessário para que tomemos posse dos fundamentais benefícios de sua morte vicária para nossa redenção.

Como visto, a ação expiatória de Cristo possui desdobramentos intrínsecos e inseparáveis de modo que se descolamos estes desdobramentos uns dos outros, como se fossem ações independentes que não possuem influência e consequências vitais umas nas outras e umas para com as outras, literalmente solapamos a lógica estabelecida pela própria Trindade para o processo de salvação da igreja.

Se a expiação não tem um valor efetivo sobre a vida do pecador eleito e pode ser adquirida ou perdida dependendo da crença ou ausência da crença do pecador, como podemos sustentar a União Mística do crente com Cristo? Ficaria ele a unir-se e desunir-se do crente mediante o Espírito Santo de acordo com o bel-prazer da vontade humana? Como fica o papel do próprio Espírito Santo nesse processo? Em harmonia com a vontade humana ou com o intento intratrinitariano? E todos os benefícios que o próprio Cristo provê aos seus quando unidos a eles, qual fim disso? Perdem-se? Por fim, uma pergunta importante: quem tem a palavra final no que tange a esta sublime união, quem a garante, Cristo ou a vontade humana?

  • A doutrina da justificação pela fé é ferida em seu cerne

Chega-se, aqui, a um dos pontos mais críticos e cruciais de nossa argumentação, uma vez que ao desconectarmos a morte expiatória de Cristo de seus eventos subsequentes inseparáveis da vida do pecador, estaremos comprometendo o cerne da doutrina mais importante da igreja[56]. É pelo sangue de Cristo que somos justificados e temos a redenção de nossos pecados[57]. A Escritura Sagrada é clara em afirmar que “temos a redenção” e não que temos “a possibilidade de redenção e perdão dos pecados”. Cristo no Calvário sofre a morte que os pecadores mereciam e satisfaz a justiça requerida pelo Legislador em favor destes mesmos pecadores, efetuando assim, de uma vez por todas, a mais bela e graciosa troca, onde o Justo se fez maldito para que o injusto, mediante a fé somente, pudesse ser acolhido como filho. A justiça de Cristo é imputada sobre o pecador de modo que este agora é visto como justo diante de Deus-Pai, sua dívida foi cravada no madeiro e sua salvação foi de uma vez por todas garantida pelos méritos de Cristo.

Este é o poder vicário da expiação de Cristo. Esta é a esperança sobre a qual podemos descansar. Se esvaziamos o significado justificador da morte de Cristo, que segurança temos de que somos de fato contados como justos? E com base na justiça de quem?

Conclusão

É muito possível que um sem número de práticas antibíblicas que têm sido implementadas e apregoadas pelas igrejas evangélicas brasileiras como comunidades e seus crentes como membros e líderes, desde as menos chamativas até aquelas que fazem corar de vergonha, sejam fruto de uma falta de compreensão mais aprofundada do significado da morte de Jesus. Compreender o que Jesus fez na cruz, como já dissemos, é compreender o coração do evangelho, seu poder e consequências sobre a vida daqueles que creem. Não compreender é o grande problema que buscamos levantar e abordar durante nossa argumentação.

Como demonstrado, existem basicamente, no meio ortodoxo da teologia evangélica, duas formas de compreender a doutrina da expiação e existe, também, uma inter-relação inseparável e fundamental entre esta doutrina da morte de Cristo e doutrinas centrais da fé cristã que se desdobram visivelmente na vida cotidiana do crente. Não estamos falando de questões secundárias da teologia que nada têm a ver com a realidade que se vive. Antes, é a partir do sacrifício vicário de Cristo que temos os benefícios mais importantes como filhos de Deus cabalmente garantidos. É pelo fato de Cristo verter seu sangue na cruz que o pecador é reconciliado, adotado, santificado, justificado e glorificado. É com base na expiação que podemos ter uma visão privilegiada da obra redentora da Trindade e do ofício sacerdotal de Cristo. É completamente questionável que coloquemos em cheque todos esses aspectos vitais para uma sadia compreensão e vivência da fé cristã. Isso compromete terminantemente a mensagem do evangelho e depõe frontalmente contra a Bíblia Sagrada.

A presente argumentação propôs-se a defender e recuperar urgentemente o valor e a atemporalidade do ensino e da proclamação desta doutrina central da fé cristã, ao mesmo tempo em que aponta sérios danos causados à doutrinas centrais da fé cristã, que são absolutamente inadmissíveis. Quanto mais a igreja compreender o significado, a importância e os desdobramentos da morte de Cristo, mais edificada e preparada ela estará para evangelizar com confiança, superar os momentos de desesperança e exaltar, acima de tudo e de todos, o Deus de toda glória, por seu amor insondável, por sua obra redentora, soberana e graciosa, nas pessoas de Cristo, o Filho Unigênito, e do Espírito, O Consolador.

Soli Deo Gloria.

Lucas Freitas é plantador da Igreja Presbiteriana do Brasil na cidade de Cunha/SP, é bacharel em teologia pela FUNVIC – Fundação Universitária Vida Cristã em Pindamonhangaba/SP, é formado no SEDEC – Seminário de Desenvolvimento Comunitário pelo CADI Brasil e na Escola Compacta pela Missão Steiger Brasil.

Referências:

[1] R.C. Sproul, Somos Todos Teólogos, 234 (São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2017)

[2] Hermisten Maia, Creio no Pai, no Filho e no Espírito Santo (São José dos Campos,SP, Editora Fiel 2014)

[3] John Murray, Redenção Consumada e Aplicada, 107 (São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2010)

[4] Burk Parsons, editor, João Calvino Amor à Devoção Doutrina e Glória de Deus, 213 (São José dos Campos, SP, Editora Fiel 2010)

[5] Jonathan Gibson e David Gibson, Do Céu Cristo Veio Buscá-la, 626 (São José dos Campos, SP, Editora Fiel 2017)

[6] Franklin Ferreira e Allan Myatt, Teologia Sistemática, uma análise histórica, bíblica e exegética para o contexto atual (São Paulo, SP, Edições Vida Nova, 2007)

[7] Franklin Ferreira e Allan Myatt, Teologia Sistemática, uma análise histórica, bíblica e exegética para o contexto atual (São Paulo, SP, Edições Vida Nova, 2007).

[8] Ver David Gibson e Jonathan Gibson, Do Céu Cristo Veio Buscá-la, (São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2017).

[9] John Owen, Por Quem Cristo Morreu, 6, (São Paulo, SP: Editora PES, 2011).

[10] R.C. Sproul, Somos Todos Teólogos, 234 (São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2017).

[11] Roger Olson, Teologia Arminiana – Mitos e Realidades (São Paulo, SP, Editora Reflexão 2013).

[12] ibid 289

[13] ibid 294

[14] ibid 293

[15] Wellington Mariano, O Que é Teologia Arminiana, 19 (São Paulo, SP. Editora Reflexão 2015).

[16] Ibid. 242

[17] Ez 18.20; Rm 6.23; Gn 2.17, Bíblia Sagrada Almeida Século 21, 1ª edição, São Paulo, Vida Nova, 2010

[18] Rm 3.23 Bíblia Sagrada Almeida Século 21, 1ª edição, São Paulo, Vida Nova, 2010

[19] I Jo 1.8 Bíblia Sagrada Almeida Século 21, 1ª edição, São Paulo, Vida Nova, 2010

[20] Sl 51.5 Bíblia Sagrada Almeida Século 21, 1ª edição, São Paulo, Vida Nova, 2010

[21] Rm 3.23 Bíblia Sagrada Almeida Século 21, 1ª edição, São Paulo, Vida Nova, 2010

[22] Is 53.10; Jo 3.16 Bíblia Sagrada Almeida Século 21, 1ª edição, São Paulo, Vida Nova, 2010

[23] R.C. Sproul, Somos Todos Teólogos, 242 (São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2017)

[24] II Co 5.21 Bíblia Sagrada Almeida Século 21, 1ª edição, São Paulo, Vida Nova, 2010

[25] Ef 1.7 Bíblia Sagrada Almeida Século 21, 1ª edição, São Paulo, Vida Nova, 2010

[26] Cl 2.14 Bíblia Sagrada Almeida Século 21, 1ª edição, São Paulo, Vida Nova, 2010

[27] Jo 1.29 Bíblia Sagrada Almeida Século 21, 1ª edição, São Paulo, Vida Nova, 2010

[28] Confissão de Fé de Westminster, capítulo 8, parágrafo 5

[29] Jonathan Gibson e David Gibson, Do Céu Cristo Veio Buscá-la, 169 (São José dos Campos, SP, Editora Fiel 2017)

[30] Os Cânones de Dort, capítulo 2 parágrafo 8. (São Paulo, SP, Editora Cultura Cristã).

[31] [-] para um estudo mais aprofundado da extensão da expiação ver John Murray, Redenção Consumada e Aplicada, 53 (São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2010).

[32] [-] Rm 3.24 Bíblia Sagrada Almeida Século 21, 1ª edição, São Paulo, Vida Nova, 2010

[33] [-] Rm5.1 Bíblia Sagrada Almeida Século 21, 1ª edição, São Paulo, Vida Nova, 2010

[34] [-] Hb 9.14 Bíblia Sagrada Almeida Século 21, 1ª edição, São Paulo, Vida Nova, 2010

[35] [-] Gl 4.45 Bíblia Sagrada Almeida Século 21, 1ª edição, São Paulo, Vida Nova, 2010

[36] [-] Hb 9.15ibid, [-] John Owen, Por Quem Cristo Morreu, 9, (São Paulo, SP: Editora PES, 2011).

[37]  [-] para um aprofundamento do conceito teológico reformado do livre-arbítrio ver Martinho Lutero, Nascido Escravo (São José dos Campos, Editora Fiel, 2014).

[38] [-] Rm 3.24 Bíblia Sagrada Almeida Século 21, 1ª edição, São Paulo, Vida Nova, 2010

[39] James Montgomery Boice e Philip Graham Ryken, As Doutrinas da Graça – Resgatando o Verdadeiro Evangelho, 136 (Rio de Janeiro, Editora Anno Domini, 2014).

[40] I Pe 4.18 Bíblia Sagrada Almeida Século 21, 1ª edição, São Paulo, Vida Nova, 2010

[41] Gl 3:13 Bíblia Sagrada Almeida Século 21, 1ª edição, São Paulo, Vida Nova, 2010

[42] Ap 5:9 Bíblia Sagrada Almeida Século 21, 1ª edição, São Paulo, Vida Nova, 2010

[43] James Montgomery Boice e Philip Graham Ryken, As Doutrinas da Graça – Resgatando o Verdadeiro Evangelho, 136 (Rio de Janeiro, Editora Anno Domini, 2014).

[44] ibid. 137

[45] ibid. 138.

[46] Jonathan Gibson e David Gibson, Do Céu Cristo Veio Buscá-la, 531 (São José dos Campos, SP, Editora Fiel 2017).

[47] para mais ver John Murray, Redenção Aplicada e Consumada, (São Paulo, SP, Editora Cultura Cristã, 2010).

[48]  [-] Thiago Titillo, Eleição Condicional, 22 (São Paulo, SP, Editora Reflexão 2015).

[49] Jonathan Gibson e David Gibson, Do Céu Cristo Veio Buscá-la, 527 (São José dos Campos, SP, Editora Fiel 2017).

[50] Bíblia de Genebra, Notas Teológicas, 1322 (São Paulo, SP, Editora Cultura Cristã).

[51] para ver mais sobre a natureza da expiação consultar: John Murray, Redenção Consumada e Aplicada, 22 (São Paulo, SP, Editora Cultura Cristã, 2010)

[52] Jonathan Gibson e David Gibson, Do Céu Cristo Veio Buscá-la, 652 (São José dos Campos, SP, Editora Fiel 2017).

[53] Ibid 626.

[54] Burk Parsons, editor, João Calvino Amor à Devoção Doutrina e Glória de Deus, 213 (São José dos Campos, SP, Editora Fiel 2010).

[55] 2 Co 5.17, Jo 15.4, I Jo 4.13, Gl 2.20 – Bíblia Sagrada Nova Versão Internacional, Edição Bíblica Inc, Editora Vida, 2000.

[56] Timothy George. Teologia dos Reformadores (São Paulo, SP: Edições Vida Nova; 1994, p. 64).

[57] Rm 3.24 NVI, Ef 1.7 NVI – Bíblia Sagrada Nova Versão Internacional, Edição Bíblica Inc, Editora Vida, 2000.