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Em meu primeiro texto aqui para os dois dedos de teologia não poderia deixar de convidar cada leitor a pensar sobre a minha maior inquietação no momento. E ao mesmo tempo não posso jamais deixar a reflexão artística de lado. Tenho uma dívida histórica com isso. Dessa forma, procuro colocar em pauta o nosso culto público, bem como a nossa visão e relação com as artes, seja ela clássica, reformada ou moderna. Como forma de avaliarmos se o que vivemos diariamente está pautado e amparado pelas escrituras e encontra descanso na graça divina. Assim, convido todos vocês para alguns momentos de reflexão, inspiração e leitura bíblica.

A POSE FOTOGRÁFICA: uma artificialidade realista

Pense em uma reunião familiar. Em cada família existe um membro metido a fotógrafo. Com sua câmera profissional, ou até mesmo com o celular, um momento que todos partilhamos surge. A foto do dia. Na sala, todos os membros se amontoam, abraçam-se, forçam um sorriso e esperam o click, para depois subirem suas fotos como um incenso perfumado em seus instagrams e facebooks. O convívio familiar é mostrado publicamente na rede, e todos podem ver os sorrisos expressos. É a felicidade sentida no momento familiar agora eternizado. A foto é tirada e aquele cenário é lembrado para sempre.

Agora pense em uma segunda foto, ou uma sequência de fotos. Elas se originam em uma reunião dominical, ou mesmo em um grande evento cristão. Luzes, pessoas de braços levantados, sorrisos e até mesmo rostos emocionados. Um arauto com uma expressão intensa e mão especulando, dando ensinamento à um povo totalmente hipnotizado por palavras grandiosas. Uma série de imagens mostrando a banda do domingo, a adoração pública, a exaltação à Deus e o momento de comunhão dominical. Dezenas de fotos tiradas, agora na rede para que a comunidade tenha um destaque, seja conhecida, e muitos ainda possam visitar e aproveitar do que a igreja local pode oferecer. O culto público em foto, eternizado como um momento único, especial, de alegria, louvor e adoração. Intenso e emocionante, racional e interessante. Fervoroso e acolhedor. As fotos estão feitas, este momento também se encontra eternizado.

Além dos sorrisos amarelos, cenografias e todo o convencimento para que aquela pessoa que odeia fotos saia juntamente de todo o grupo, o que essas duas situações fotográficas têm em comum?

Cada uma das fotos tem algo extremamente importante. Somente as fotos possuem isso, ou talvez apenas a elas deveria pertencer tal façanha. Possuem a pose. Sim, a pose fotográfica, aquela cara de feliz que você faz. As caretas que seus amigos fazem ao tirarem uma foto para um grupo de whatsapp. Aquela cara de Jimmy Hendrix que o guitarrista da igreja faz quando sabe que o fotógrafo está apontando para ele. O reino da pose fotográfica começa ao saber que estamos sendo vigiados, que nossa imagem será mostrada para alguém. É uma artificialidade realista, uma manufatura real de um cenário imaginário.

O RETRATO HUMANO: uma contrapartida do ordinário

A arte tem um poder incrível de conseguir retratar a humanidade das coisas. Sejam pensamentos, comportamentos ou até mesmo fatores importantes da sociedade. A arte fotográfica, mesmo sendo incrível e realista, talvez perca de longe para algumas obras do século XVII.

Jan Steen foi um pintor holandês do século XVII. Com um olhar cuidadoso nas obras dele podemos entender algo sobre o reino da pose fotográfica. A grande maioria dos seus quadros capturam momentos cotidianos, muitas vezes familiares e comunitários. Há quadros sobre o dia de Natal, em que uma família se encontra na sala e as crianças estão recebendo seus presentes de São Nicolau (ou o famoso Papai Noel). Há pinturas sobre casamentos em praça pública, trabalhadores em frente a uma taverna, uma garota comendo ostras, outra garota tocando piano, uma família apreciando um concerto caseiro, outra família desfrutando um banquete. Também a celebração de um nascimento, crianças ensinando um gato a dançar e uma infinidade de temas que normalmente chamamos de fúteis ou irrelevantes. Usarei aqui para descrever as obras de Steen uma palavra que deverá descrever nossa “normalidade” de vida. As suas obras têm uma capacidade de reviver e demonstrar o ordinário.

Sim, quadros com cenas ordinárias, comuns, até mesmo feias e sem fatores interessantes. Aquele tipo de coisa que conseguimos observar todos os dias, mas que nunca paramos para olhar direito. Aquele fator mesquinho, desinteressante, pouco atrativo, que ao mesmo tempo tão familiar ao ponto de gerar em nós o balanço da cabeça e o sonoro “é isso mesmo”. No ordinário habita um segredo que o reino da pose fotográfica jamais poderá encontrar, a humanidade pura, desnuda, simples e direta.

Tanto Jan Steen, quanto vários outros pintores daquele século, tinham uma sutil e justa intenção, retratar o ordinário, em seus pequenos detalhes. Mesmo não tendo ali uma cena explicitamente real, estavam revelando para cada observador toda a realidade da expressão humana. Em detalhes como expressões faciais, movimento dos braços, posições de cada pessoa na divisão do quadro, a humanidade estava sendo desvendada. O retrato humano sendo colocado sem artificialidades. Não há pose, sorrisos amarelos, fingimento. No retrato destacado nas pinturas, rostos raivosos e infelizes aparecem, dramas são revelados e a realidade social desmascarada. O segredo da humanidade revelada. Por mais que o retrato em forma de pintura seja muito mais artificial que uma fotografia, talvez consiga revelar muito mais humanidade sem o fingimento da pose.

E é nesse paradoxo que nos encontramos hoje. Estamos entre a vivência ordinária e o domínio da artificialidade. Entre o reino da pose fotográfica e o puro retrato humano. O retrato humano, puramente simples e estranhamente familiar, é a contrapartida ordinária à nossa vida de poses fotográficas.

A POSE ARTIFICIAL NO DOMÍNIO RELIGIOSO

Vamos pensar no cenário da igreja atual. Agora não é a hora de lembrarmos do passado, seja da antiguidade clássica, dos pais da igreja, da reforma protestante, dos grandes avivamentos ou qualquer coisa que nos distancie de olharmos apenas para o que fazemos atualmente. Quantos congressos realizamos por ano? Cultos, acampamentos, eventos evangelísticos, reuniões, grandes momentos de louvor, ou seja lá que nome damos para tais atividades. São eles baseados na pose fotográfica ou no retrato humano?  Seja na sua essência, na imagem demonstrada nas redes, ou na própria estética, uma grande demonstração artificial, ou a vivência do ordinário comum?  

Percebe a diferença? O que estamos fazendo como Igreja de Cristo? Como estamos encarando o culto público? Será que ele é uma tarefa artificial, para a sustentação de uma fé fingida, que precisa se manter por conta do tradicionalismo ou será que é um viver humano, que divide a mesa da tradição cristã, compartilha a fé, de fé em fé, e em graça em graça cresce, se edifica e glorifica o Pai? Preferimos poses, postagens, likes e divulgação, ou a simplicidade, talvez até o anonimato do viver ordinario?

Não quero aqui condenar as luzes, os grandes congressos, eventos gigantescos e todas as parafernalhas que gostamos. Se gostamos e nos sentimos bem com isso, está tudo bem. Cada comunidade deve escolher estratégias que significam para elas aquilo que Deus tem movimentado pela Palavra em cada localidade. Podem haver congressos, eventos e grandes luzes, shows e seja lá o que mais inventarmos. O que é condenável, pelas palavras do nosso Cristo, é o depender de tudo isso. Gerar uma imagem sem vida. O problema é justamente a essência de todas as coisas ser baseada na artificialidade das poses fotográficas que temos hoje em dia.

Para deixar claro, uso pose fotográfica apenas como um nome um pouco mais ameno para idolatria da imagem.

O CHAMADO AO ORDINÁRIO DE JESUS CRISTO

Fui apresentado à Jan Steen, esse pintor holandês, católico, do século XVII e extremamente ordinário através de um livro do Hans Rookmaaker. Também a Rembrandt, Jan Van Goyen, Ticiano e tantos outros. É incrível como a arte pode expressar muito sobre a nossa visão de mundo. Foi assim que fui arrebatado no pensamento sobre o nosso culto cristão, nossas reuniões, e o nosso viver fotográfico. O nosso viver deve ser influenciado por Cristo Jesus. As escrituras nos revelam o caminho traçado por Ele e o plano do Eterno. E o alicerce principal das escrituras nos mostra que não existe nada de pose fotográfica nessa grande história.

 

“Essa compreensão vem, como eu disse, da Reforma, o que significa que é fruto do modo como a Bíblia vê a vida. É uma compreensão que remonta a vida ao alicerce do cristianismo bíblico, o próprio Jesus Cristo. É uma percepção que provém da fonte de vida, das escrituras.”

(H. R. Rookmaaker, A arte moderna e a morte de uma cultura, p.35)

 

Creio que a humanidade ordinária, tal qual como estamos tentando refletir aqui neste primeiro texto, seja escancarada à nós nas palavras de Jesus em Lucas 18.9-14. Nela temos um fariseu e um publicano, ou cobrador de impostos. O fariseu é religioso, fiel, comprometido e ativista. O publicano é pecador, impuro, traidor e odioso. A oração do fariseu ao chegar no templo é uma pose fotográfica. Ele fala de suas atividades, mostra suas fotos no instagram, revela os números de seu mais recente congresso. Enche o peito para falar de sua teologia e de seu conhecimento histórico. Se coloca de pé, é seu próprio senhor. Já o publicano revela o retrato humano, ordinário e desinteressante. Tem vergonha de se aproximar, se reconhece como pecador. Bate no peito, clamando por misericórdia, sem ter nenhuma teologia para o justificar. Não ousa levantar os olhos, sabe quem é o seu Senhor.

E Jesus afirma: “Eu lhes digo que foi o cobrador de impostos, e não o fariseu, quem voltou para casa justificado diante de Deus. Pois aqueles que se exaltam serão humilhados, e aqueles que se humilham serão exaltados.” (Lc 18.14 NVT)

Cristo nos dá esse convite, muito antes de Jan Steen e Rookmaaker. Muito antes dos pais da igreja, da Reforma, dos avivamentos puritanos e das revoluções libertárias. Bem antes de qualquer movimento que possamos imaginar e imagear, Jesus Cristo já nos revelou a beleza do viver ordinario. Não precisamos criar uma imagem para nós mesmos, uma fotografia falsa. Deus não está no camarote esperando a nossa performance para então se colocar de pé e aplaudir.

A partir da reflexão da pose fotográfica e do retrato humano, podemos encontrar no cerne das escrituras o convite simples à vida. É um convite à mesa, ao comum. Sem talvez grandes feitos e alvoroços (o que nos levará à um próximo texto), mas intensamente vivida naquilo que é explicitamente tornado habitual. Não precisamos de artificialidades teológicas, eventos imageados como grandes para ganharmos destaque e reconhecimento, tampouco fotos incríveis que mostram como temos sido melhores que outros. A autopromoção, a imageação da religião e a pose teológica não precisam ser perseguidas. Antes, podemos aproveitar o descanso que a graça proporciona, a simplicidade do Cristo em nós, o viver arrependido e o coração quebrantado.

Como temos nos reunido? Estamos pensando apenas em deixar registrado imagens que simbolizem nosso trunfo religioso através dos congressos, cultos maravilhosos e palavras encorajadoras? Nossas reuniões são voltadas para gerarem fotografias eternizadas de momentos superficiais e vazios, desprovidos de humanidade? Ou será que o nosso caminho tem sido o da mesa, e mesmo com congressos, luzes e grandes eventos, ressaltamos o valor do relacionamento, da humanidade por vezes feia e daquilo que não é mercadológico? Nosso maior problema é nos perdemos na pose, quando na verdade precisamos viver um retrato humano da vida com Cristo.

O retrato humano sempre será perdido quando criarmos a pose teológica, a pose de eventos, a pose dos congressos, a pose das grandes igrejas, a pose dos louvores apelativos. No fim, uma pose sempre será apenas uma pose, enquanto o retrato procura demonstrar o que se é na realidade. Renovar a mente com as escrituras é sempre dar valor àquilo que Cristo demonstra no caminho da vida e não na pose religiosa.

Saber que o retrato humano não se encontra na pose artificial nos traz ânimo para um vínculo real e perpétuo com as palavras do nosso Senhor e Rei. Vivendo no Caminho, na liberdade trazida ao nosso cativeiro. Assim, finalmente podendo desfrutar daquele que sendo Rei dos Reis, esvaziou-se para viver o ordinário, destruindo nossas próprias tentativas de nos fazermos senhores inúteis e reis de reinos imaginários.

Guilherme Iamarino, nascido em Campinas-SP, é compositor, multi-instrumentista, professor de música, membro do Projeto Sola, estuda teologia pela Universidade Metodista e é membro da IBAVIVA em Vinhedo-SP.