O negócio tá no sangue. Meu pai sempre foi apaixonado por games e filmes. Comecei pequena, com os animes, e hoje em dia sou uma entusiasta das séries. A ficção sempre fez parte da minha vida e, sendo assim, norteou a minha visão de mundo.
Só que todo esse universo fictício e cuidadosamente desenhado visando à perfeição acabou me trazendo uma espécie de negação da minha própria realidade. Eu nunca estava satisfeita, afinal, minha mãe não era tão legal como a Lorelai Gilmore e o meu pai não era tão divertido como o pai da Sakura Kinomoto. Eu não tinha avós tão generosos como a Rory, nem tios tão bondosos como a Elizabeth Bennet. Quando eu abria a porta do meu quarto, eu via uma casa mais ou menos, uma mãe reclamando por causa da lavagem dos pratos e um pai agitado pois quase teve um infarto ao falar com a moça do telemarketing. Só que eu podia abafar tudo isso, afinal, havia tantas coisas para me preocupar: faculdade, estágio, trabalhos, namoro. Não havia tempo para a minha própria casa.
Até que eu decidi estudar para concursos públicos. E todo mundo sabe que “concurseiros” acabam virando seres reclusos por tabela. E foi aí que eu, pela primeira vez na vida, me vi presa em casa com os respectivos integrantes dela. Eis que esses dois, que para mim eram quase estranhos até um dia desses, eram a única companhia que eu tinha.
A realidade caiu como uma bomba.
De repente problemas como a lavagem de pratos e a esterilização das frutas se tornaram cotidianos para mim. De repente eu precisava cuidar da organização da casa e, quem sabe, até do almoço. De repente eu precisava lidar com meus pais bastante inquietos. Talvez você precise lidar com seu marido que não te ajuda tanto nas tarefas domésticas ou com o seu irmão que é conhecido pela arrogância. A vida doméstica possui desafios em duas frentes que se correlacionam: pessoas e ambiente.
Se você também possui uma forte vivência doméstica, você sabe que:
- Problemas com sujeiras, melecas e coisas nojentas em geral se tornam sua realidade;
- Você tem que lidar com todas as mínimas idiossincrasias que um ser humano pode conceber e percebe o quanto nós somos tendenciosos a brigar pelas coisas mais irrelevantes do universo;
- Você tem acesso à primeira fileira do espetáculo de imperfeições daqueles que moram debaixo do mesmo teto que você;
- Você precisa engolir a raiva 1, 10, 1 milhão e 600 mil vezes por dia;
- Seus pecados mais domesticados vêm à tona como em um show de horrores quase diário.
Não é bonito, não é desejável. Mas sabem o que eu tenho aprendido? Que é justamente nesse contexto de absurdos e extremos que o Senhor quer que eu (ou você) esteja, pois é exatamente em uma realidade de puro caos em que todos demonstram seu pior que você pode crescer, amadurecer e se tornar uma pessoa segundo a imagem de Cristo. Viver na realidade utópica das ficções não te permitirá isso. Pensar que a sua vida deveria ser que nem a do novo lançamento da Netflix não fará isso por você. Como você pode exercitar a sua nova criação estando imersa em universos fictícios? Como você pode amar, servir e perdoar se seu coração está em personagens que não existem de verdade?
A vida abundante acontece na mediocridade do cotidiano.
Entrar em universos imaginários de vez em quando não é pecado. Se imaginar no castelo de Downton Abbey tomando um belo chá da tarde não é quebra de nenhum mandamento bíblico. Mas é preciso entender que o agir do Senhor ocorre na realidade da sua casa com o encanamento entupido e o ar condicionado quebrado há 3 meses. É quando sua mãe grita com você sem motivo ou quando seu marido não te ajuda na limpeza da casa pela 149ª vez. É na imperfeição, na feiura, no incômodo. Porque o Senhor escolheu ” as coisas loucas deste mundo para confundir as sábias; e […] as coisas fracas deste mundo para confundir as fortes” (1 Coríntios 1:27). E quer coisa mais louca do que uma vida doméstica constituída pelo inesperado e por seres humanos completamente imprevisíveis?
Manuela Moraes é uma recifense de 26 anos formada em Comunicação Social e Administração de Empresas. Ama falar sobre o Evangelho na Internet e faz isso através do Dois Dedos de Teologia e do seu canal também sobre Teologia, o Manuela Moraes. Canta no Ministério de Jovens da Igreja Presbiteriana das Graças e é calvinista por paixão e por opção de Deus.