Nos últimos meses, esteve muito em voga uma discussão em torno do aborto. Muitas pessoas são a favor, muitas outras são contra. Essa discussão não é recente, mas nos últimos tempos houve novos elementos envolvidos pelo fato de ter havido algumas decisões governamentais relaxando as regras permissivas do aborto ao redor do mundo e, em contrapartida, no Brasil, uma maior ressonância da voz que se expressa contra o aborto como um direito inescapável das mulheres (na esteira de uma maior proeminência do pensamento conservador no debate público). No meio de toda essa discussão, muitos textos foram escritos e muitos vídeos foram publicados para defender ambas posições. Este texto não é mais um contra ou a favor do aborto.
Dissipando qualquer curiosidade, afirmo de pronto: sou contra o aborto. Minha questão é outra, é uma crítica a quem se diz contra o aborto, mas não se expressa de forma coerente com o que diz acreditar. Antes de abordar essa crítica de forma mais específica, pretendo expor o que me parecem ser os elementos formadores do meu posicionamento acerca do assunto, aplicáveis a qualquer pessoa. Irei chamá-los de elementos pístico, empírico e teórico. Essa ordem não é sem propósito, ela representa a sequência de formulação da convicção a partir da minha vivência. Nada impede que outros sejam primeiramente convencidos por categorias teóricas ou tenham primeiramente experiências que moldem suas convicções. De minha parte, a fé falou primeiro.
Portanto, em primeiro lugar, o elemento pístico. Decorrente da fé, esse elemento possui bases religiosas evidentes, pois é como cristão que creio no estabelecimento da vida desde a concepção, que a vida de um bebê não nascido é tão valiosa quanto a de um bebê nascido, que é o bebê dentro do útero é uma pessoa tanto quanto qualquer nascido. A Bíblia não deixa a mínima margem para dúvida. Os textos que embasam o pensamento nesse sentido são fartos.
No Salmo 139.16, Davi afirma que Deus já o via quando ele era “substância ainda sem forma”, de modo que todos os seus dias foram escritos no livro divino, todos os dias, quando nenhum deles ainda havia. Jó 31.15 não deixa dúvida sobre a ação de Deus na formação do bebê dentro do ventre (“Aquele que me formou no ventre não fez também o meu servo? Não foi o mesmo que nos formou no útero?”). Em Jeremias 1.5 temos o próprio Deus dizendo ao profeta: “Antes que eu te formasse no ventre te conheci, e antes que nascesses te consagrei e te designei como profeta às nações”. Imagine que estranho seria se Deus consagrasse um amontoado de células como profeta, que só depois se tornaria um ser humano.
No mesmo sentido, Isaías afirma não apenas que Deus o formou, que Deus o conheceu ou que Deus o consagrou, mas que Deus o chamou pelo nome! Sim, “O Senhor chamou-me desde que nasci, fez menção do meu nome desde o ventre da minha mãe” (49.1). Amontoado de células não tem nome, só pessoa. O texto de Êxodo 21.22 é emblemático, pois a palavra utilizada no hebraico para se referir a um bebê ainda no ventre é a mesma para se referir a filhos já nascidos, demonstrando que não há qualquer diferença entre eles, exceto o fato de um estar fora do ventre o outro dentro (ainda). O mesmo padrão linguístico é encontrado em Gênesis 25.22, quando relata os filhos gêmeos de Rebeca lutando dentro do ventre. Ainda eram crianças dentro do útero, mas não são referidos como outra coisa que não crianças, apenas.
No Novo Testamento, o padrão é o mesmo. Paulo afirma que “desde o ventre da minha mãe me separou e me chamou pela sua graça” (Gl 1.15), demonstrando profunda convicção de chamado intrauterino, o que é possível apenas se bebês não nascidos forem pessoas e não coisas ou um amontoado de células. Assim como no hebraico, no grego não há distinção entre criança que esteja fora ou dentro do útero. A palavra utilizada para bebês, nascidos ou não, é a mesma (Lc 1.41 e 2.12). Aliás, o texto de Lucas é simbólico, pois mostra que não somente um bebê é gente dentro do útero tanto quanto fora, como é possível que ele tenha reações e interaja com o mundo externo: “Quando Isabel ouviu o cumprimento de Maria, a criancinha saltou em seu ventre; Isabel ficou cheia do Espírito Santo” (1.41).
É evidente que a convicção acerca da qualidade de pessoa do bebê no ventre, não importa qual seja a idade gestacional, não torna mais fácil lidar com problemas de gravidezes que sejam decorrentes de estupro ou de bebês que tenham malformação, mas muda radicalmente a forma de tratar esses problemas, muda os referenciais éticos. Afinal, não se está apenas diante de uma mulher que tem direito sobre seu corpo, mas diante de um bebê que tem direito à vida, tanto quanto qualquer outra pessoa. Não creio que a resposta a esses problemas por parte de quem é contra o aborto deva ser um frio e simples “abortar é errado”, é necessário apoio à mãe que não desejou nem planejou estar grávida, está enfrentando um trauma incomparável e precisará aprender a enfrentar uma situação de dor e sofrimento. O apoio às mães nessa situação passa necessariamente pela educação acerca do valor da vida e pelo estabelecimento de uma rede de apoio que lhe proporcione condições de ter segurança material e emocional para criar seu filho.
Vale mencionar que o posicionamento contra o aborto não ignora dilemas éticos de situações em que a vida da própria mãe corre risco. O que esse posicionamento faz é justamente manter isso como dilema ético, uma escolha entre duas vidas, não como algo fácil que é escolher a vida da mãe em desfavor de uma coisa sem identidade ou significado.
Também não é tão simples dizer que abortar não é uma boa opção a quem enfrenta a dor de saber se seu bebê poderá sequer sobreviver fora da barriga. É necessário que se demonstre compaixão pelo bebê e pelos pais, muitas vezes enlutados e não empolgados com a chegada daquela criança. Entendo, portanto, que não deve ser ponto de discussão entre cristãos o posicionamento contra ou a favor do aborto, mas é possível que haja dificuldades no enfrentamento de situações que envolvam gravidezes traumáticas, de modo que as conclusões sejam diversas, muito embora a premissa de respeito à vida seja a mesma.
Diante disso, é fácil perceber que o desafio não é pequeno. Com efeito, o desafio para quem é contra o aborto é ainda mais difícil, e expressa, na verdade, mais valor pela vida da mãe, pois buscará contornar seus traumas e aflições sem matar seu filho; sem, portanto, desprezar a vida do bebê nem da mãe.
O dilema relacionado a como lidar com a família que está diante de uma gravidez fruto de violência ou de um bebê que tenha pouca ou nenhuma chance de sobreviver fora do útero leva ao segundo elemento formador do meu posicionamento: empírico. Em 2016, eu e minha esposa enfrentamos uma gravidez de alto risco. Nosso bebê tinha uma síndrome cromossômica chamada Síndrome de Turner. Não preciso contar o testemunho detalhado neste espaço, pois já o fiz em outra oportunidade.
O fato é que nós queríamos engravidar, e ficamos radiantes quando descobrimos que havia um bebê a caminho. Desde o início (seis semanas), sentíamos um amor como nunca antes havíamos sentido; passamos a conversar com o bebê mesmo sem saber o sexo, fazer planos, construir ideais, sonhar. Ouvir seu coração com oito semanas de gestação foi uma das experiências mais intensas da vida. Infelizmente, com doze semanas, em um exame que deveria ser de rotina (morfológica do primeiro trimestre), nosso mundo caiu quando descobrimos que havia algo errado com nosso bebê. Daí até as dezenove semanas foram dias de muita dor, choro, incertezas, orações pedindo cura, exames, consultas. Foram dias intensos, não sabíamos se nosso bebê sobreviveria até o final da gestação, nem qual seria sua condição de vida extrauterina, caso sobrevivesse. Quando aprouve ao Senhor, seu coraçãozinho parou de bater e nós nos despedimos da nossa pequena Laura, um bebê que não nasceu com vida, mas enquanto viveu foi amada e cuidada. Não importava se ela estava dentro ou fora do útero, fomos pais que fizeram tudo que estava ao nosso alcance para cuidar dela.
Essa experiência me fez refletir bastante sobre gravidezes difíceis e aborto. Se antes minha convicção sobre o aborto, fruto da fé, era um tanto abstrata e conceitual, agora ela era concreta, tinha nome, forma, tempo e memória. Mais que antes, eu não poderia conceber a ideia de forçar a retirada da minha filha do ventre de sua mãe se essa não fosse a vontade Deus. No dia em que descobrimos que o coração da nossa filha não estava mais batendo, o médico, antes de examinar, havia nos entregado o resultado do exame que constatou a Síndrome de Turner e insinuou a possibilidade de aborto. Quando negamos e pedi que ele examinasse para ver como estava nosso bebê e ele viu que o coraçãozinho não mais batia, disse: “É, a natureza resolveu pra vocês”. Chame de natureza, chame do que quiser, o fato é que Deus tem a vida de todos nós em suas mãos; nascidos ou não, nossas vidas pertencem a ele. Da mesma forma que ele é soberano sobre a morte de um idoso que cumpriu todas as etapas da vida, é soberano sobre a morte acidental de um jovem ou a morte intrauterina de um bebê.
Alguém pode argumentar que essa foi apenas minha experiência, que não posso impor minhas conclusões a outras pessoas. A isso respondo que sim, é verdade, cada um reage de um jeito. O aspecto empírico parece ser mais subjetivo mesmo. Mas estou assumindo a premissa da fé cristã para não ter dúvida de que não cabe questionamento acerca do valor de uma vida humana, seja fora ou dentro do útero. Pode-se pensar que insistir no nascimento de um bebê malformado é crueldade e egoísmo. Não, não é. Partindo de uma cosmovisão cristã, sabemos que o mundo é mau, “os mortos [são] mais felizes do que os que ainda vivem, e mais feliz do que ambos é o que ainda não nasceu, que não viu o mal que se faz debaixo do sol” (Ec 4.2, 3). Isso, porém, não é desculpa para eliminar a vida de um bebê não nascido. Fosse a maldade social ou circunstâncias adversas pessoais motivos justificáveis, nenhum bebê deveria nascer, pois ninguém está salvo do sofrimento nesta vida. Além disso, a Bíblia afirma que “o Senhor é quem tira a vida e a dá; faz descer à sepultura e faz ressurgir dali” (1Samuel 2.6).
O mesmo argumento é válido para o caso de gravidezes cujos bebês são saudáveis, mas não foram desejadas, pois o “mal que se faz debaixo do sol” é imprevisível. É possível que um bebê fruto de uma gravidez indesejada, cuja mãe foi vítima de violência, tenha uma vida próspera e feliz (assim como sua mãe pode superar o trauma e encontrar consolo no próprio filho), como é possível um bebê sem nenhuma malformação, fruto de uma gravidez planejada e desejada ser exposto às mais terríveis intempéries e dissabores. A verdade é que não sabemos; o futuro a Deus pertence, somente a ele.
Portanto, em minha experiência familiar, nunca consideramos abortar nosso bebê. Pelo contrário, desde o primeiro momento, nossa decisão foi de lutar, lutar até o fim pela nossa filha. Creio que isso é o que deve ser feito, devemos lutar pelos nossos bebês e suas mães, protegendo e cuidando de ambos, devemos apoiar as famílias à nossa volta que enfrentam gravidezes difíceis, as igrejas precisam estar preparadas para ser suporte às mães, aos pais e aos filhos, nascidos ou não, que precisarem.
Muito embora meus pensamentos, hoje, estejam mais claros, à época da nossa primeira gravidez, em meio ao turbilhão de sentimentos, muitos questionamentos afloraram, algumas dúvidas surgiram (em meio ao processo, ter o acompanhamento de profissionais de medicina e psicologia extremamente capacitados fez toda a diferença. Temos muita clareza de que foram instrumentos de Deus na nossa vida).
Esses questionamentos levam ao último elemento de minha convicção: o teórico. Quem primeiro me ajudou nesse sentido foram Franklin Ferreira e Alan Myatt. Eles dizem assim: “o processo reprodutivo não somente produz o corpo, mas também um novo espírito. O aspecto espiritual é um elemento essencial da natureza humana, não uma parte adicional agregada. Por conseguinte, o espírito da própria criança emerge da união das duas sementes que são dadas pelos pais, durante a relação sexual” (Teologia sistemática, p. 413). Essa afirmativa me fez entender muito fortemente que minha filha foi uma pessoa completa desde o início. Não apenas isso, me faz ter certeza de que nos encontraremos na eternidade.
Não se deve supor, entretanto, que esse é um posicionamento traducionista. Admite-se simplesmente que cada alma é uma criação de Deus, realizada no momento da concepção. Louis Berkhof, apesar de admitir dificuldade para determinar com precisão o momento em que a alma é criada, afirma que o criacionismo “pode significar simplesmente que a alma, conquanto chamada à existência por um ato criador de Deus, é, contudo, pré-formada na vida física do feto, isto é, na vida dos pais” (Teologia sistemática, p. 183, 184). Michael Horton reforça o posicionamento que valoriza a vida humana de forma integral desde a concepção, ao afirmar que “a partir do momento da concepção, cada um de nós já é um participante na teia de histórias, relacionamentos, genética e educação humanos que condicionam nossa identidade pessoal” (Doutrinas da fé cristã, p. 403).
Tratando especificamente a respeito do aborto, Karl Barth é bastante incisivo ao defender a vida intrauterina e equipará-la enfaticamente com a vida fora do útero, não havendo desculpa que seja plausível para se tirar a vida de um bebê. Ele chama quem pratica o aborto de assassino.
Esta questão repousa na situação em que a concepção acontece, mas por variadas razões o nascimento e a existência da criança não são desejados e são, talvez, temidos. As pessoas envolvidas são a mãe, que carrega tanto a atitude quanto o desejo, ou permite que se faça; o assistente amador mais ou menos informado, talvez um profissional cientifica e tecnicamente treinado; o pai, parentes ou terceiros personagens que permitem, promovem, assistem ou favorecem a execução do ato, e depois compartilham a responsabilidade. E em um senso mais amplo, mas não menos estrito, está a sociedade, de quem as condições e mentalidade, direta ou indiretamente, incentivam esse tipo de atitude, de quem também as leis podem até permitir. Os significados empregados variam de um contexto mais primitivo para outro relativamente mais sofisticado, mas esse aspecto não demanda nossa atenção neste primeiro momento. Nosso primeiro foco deve ser no sentido de que nenhum pretexto pode mudar o fato de que todo o círculo daqueles envolvidos está, essencialmente, engajado em matar uma vida humana. Pois a criança não nascida é desde muito do início uma criança. Ela ainda está em desenvolvimento e não tem uma vida independente. Mas é um ser humano, não uma coisa, não é uma mera parte do corpo da mãe. […]
Antes de prosseguir, precisamos sublinhar o fato de que quem destrói uma vida em germinação mata uma pessoa e, então, se aventura na coisa monstruosa de decretar acerca da vida e da morte de um igual cuja vida é dada por Deus e, por isso, como sua própria vida, pertence a Ele. (Church Dogmatics, III.4, p. 415-416)
Filosoficamente, Francisco Razzo constrói um robusto edifício teórico no livro “Contra o aborto”(Editora Record), para demonstrar os aspectos frágeis dos argumentos a favor de tal prática. Lançado no final de 2017, o livro de Razzo é a erudição a serviço da vida. Infelizmente, o imaginário tende a pensar que no debate envolvendo o aborto, quem se posiciona a favor o faz apenas por estar imbuído de opiniões apaixonadas, ao passo que o posicionamento favorável é cientificamente embasado e teoricamente fundamentado. Razzo deixa clara sua intenção de desfazer esse engano:
Este livro trata do exame crítico de crenças que motivam escolhas morais e não do julgamento moral das escolhas – embora, devido à natureza polêmica do tema, possa dar a impressão de que eu esteja julgando moralmente pessoas. O fato é que estou julgando a consistência teórica da expressão “é verdadeque o aborto deva ser permitido, pois é verdadeque a mulher tem o direito ao próprio corpo e é verdadeque o embrião não é uma pessoa”. E para este julgamento teórico estou oferecendo um contraponto, igualmente teórico, do tipo “não é verdadeque o aborto deva ser permitido, pois essas razões não são teoricamente convincentes”. […]
Quando as pessoas discutem aborto, muitas entram em debates com apelos emotivos sem qualquer rigor intelectual. Pretendem apenas convencer o interlocutor pelo poder da força retórica e física. Existem razões mais do que suficientes para abandonar esse tipo de postura. A principal delas é que todo tipo de apelo à emoção não passa de relativismo – e por que não dogmatismo? – mal disfarçado. No caso do aborto, isso é mais grave em virtude de um debate cujos resultados decidirão sobre vida de pessoas inocentes. Um debate precisa superar esse tipo escorregadio das emoções e encontrar o terreno seguro da razoabilidade, sobretudo quando reconhece os frágeis limites da condição humana. (p. 33, 35)
Uma ressalva é importante: não incorro nos argumentos teóricos contra o aborto, pois este não é o propósito do texto. Espero, contudo, ter demonstrado que a questão do aborto para os cristãos pode divergir em pontos outros que não sua legalização. Espero ter demonstrado também que, no debate público, não se trata de um lado cientificamente embasado e outro cegamente apaixonado, trata-se de uma discussão em que ser contra o aborto é teoricamente mais seguro e consistente. Do outro lado, o que resta é apenas retórica libertária inconsequente.
Parto, então, para o ponto central desta reflexão, que é a linguagem abortiva presente até mesmo entre aqueles que são ferrenhamente contra o aborto. Minha crítica, neste ponto, parte da observação de dois contextos: contra os pais que engravidam e não assumem estarem vivendo a parentalidade desde o início, apenas se preparando para a experiência que há de vir após o nascimento; e contra a equivalência discursiva que se pratica entre estar vivo e estar nascido.
Primeiramente, portanto, é preciso deixar para trás a ideia calcada no sentido de que a gravidez é apenas um prelúdio, uma preparação. Ela é um momento de formação, é verdade, mas é uma formação ambivalente. Pais e mães são formados junto com os bebês. Da mesma forma que o bebê em formação é um bebê, pais em formação são pais. Ao dizer a uma mãe ou pai grávido (sim, os pais também engravidam!) “parabéns, vai ser papai” ou “você será uma ótima mãe”, você utilizando uma linguagem incompatível com sua convicção relacionada ao aborto. Na verdade, você está expressando uma ideia compatível com o sentido de aquilo sendo formado dentro do útero ainda não ser um bebê com pai e mãe, mas apenas uma coisa. É preciso mudar essa linguagem com urgência. Sua sutileza não reduz sua importância.
É importante dizer que também se nutre o imaginário de menor importância a alguém que é pai há menos tempo. Isso não pode acontecer. Um pai (ou mãe) menos experiente não é menos pai, é menos experiente. Apenas isso. Antes de nossa segunda filha nascer, eu e minha esposa já éramos pais da Laura. Não sabíamos ainda como era sermos pais de um bebê nascido com vida e saudável, assim como hoje não sabemos como é sermos pais de uma filha adolescente. Mas isso não nos tornava menos pais, assim como hoje não somos menos pais de quem tem filhos adolescentes.
Em segundo lugar, estar vivo não é o mesmo que ter nascido. Nossa cultura concebe a ideia de que o nascimento com vida é um marco importante. De fato, é. Tanto que há sérias implicações jurídicas. Por exemplo, nosso Código Civil diz que a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida (art. 2º). Porém, o mesmo artigo estipula dos direitos do nascituro desde a concepção. Não é desde as doze semanas ou a partir de quando houver sistema nervoso, é desde a concepção. Como bebês que ainda não nasceram são pessoas vivas, o nascimento com vida não nos torna mais importantes que os bebês dentro da barriga. Essa certeza deveria nos levar a mudar a linguagem para nos referir ao tempo que temos de nascidos na contagem da idade, não de vida, pois ela veio antes, na concepção. Pode parecer supérfluo, mas meu ponto é que o sutil é importante, que valores são corroídos a partir de pequenas atitudes e linguagens que se perpetuam.
Como o título aponta, as questões aqui levantadas como problemas são muito sutis. Tão sutis que só as percebi porque perdi minha primeira filha antes que ela nascesse, revelando a mim e a minha família uma realidade que não nos era perceptível. Provavelmente, não tivesse passado por esse trauma estaria ainda aceitando a ideia de que quem está grávido “vai ser pai” ou de que a experiência da paternidade só tem valor considerável após o nascimento do bebê. Espero que este texto contribua para que você, contra o aborto, valorize mais a vida por meio da sua linguagem na sutileza do dia a dia, não apenas quando estiver vociferando argumentos contra o ato de abortar, mas que você valorize mais seu bebê dentro da barriga de forma efetiva. Se você é a favor do aborto, estarei satisfeito se você tiver chegado até aqui e tiver ficado reflexivo. Leia o livro de Francisco Razzo para uma construção teórica robusta contra o aborto.
João Guilherme é formado em Direito e mestrando em Teologia. Foi um dos idealizadores da Box95 e atualmente está à frente da Editora 371.