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Quando eu estava no último ano do Ensino Médio uma colega de sala e eu começamos uma conversa que parecia se encaminhar rumo a questões religiosas. Eu, nova convertida que era, fiquei extremamente feliz com a possiblidade evangelística, mas me desanimei ao perceber que ela estava presa a uma teologia de boas obras — “se eu for boa e fizer o que é certo, não só serei abençoada nessa vida, mas terei a vida eterna também”. Me lembro que ela usou, para justificar seu modo de pensar, o livro de Provérbios. Na época eu não soube rebater seus argumentos e me dei por vencida. Afinal de contas ela tinha razão, a Bíblia realmente dizia que se “consagrarmos ao Senhor tudo o que fizermos, nossos planos serão bem-sucedidos” (Cf. Pv. 16:3). Certo?
Dez anos depois eu me percebi ainda confusa com as mesmas questões. O livro de Provérbios sempre me pareceu complicado pois era fácil apontar versos que soavam como uma quase teologia da prosperidade. O justo prospera, o ímpio perece. O sábio fica rico, o tolo empobrece. Faça o certo e você terá sucesso, e assim por diante. Como, então, conciliar esse livro com o resto das Escrituras? Eu sabia que o erro não estava na Palavra, mas em mim, então fui em busca de respostas. Esse artigo é, portanto, uma tentativa de compartilhar o que aprendi desde então, na esperança de ajudar quem mais enfrentar as mesmas dificuldades.

O que são Provérbios?

Creio que a primeira coisa a se fazer é entender o que são, de fato, provérbios. O dicionário dá a seguinte definição: “Máxima expressa em poucas palavras e tornada vulgar [popular]” [1]. Nós vemos isso no livro bíblico — várias frases, por vezes “soltas”, contendo máximas de sabedoria sobre como viver bem. Mas a definição que creio eu ser mais fácil de entender vem do pastor John Piper: “Um provérbio é frequentemente uma maneira recomendada de agir que será sábia em certos cenários mas não em outros (…) sendo geralmente verdadeira e útil, mas não verdadeira e útil em toda situação” [2].

O que isso quer dizer? Em seu artigo sobre o tema John Piper nos sugere pensar em um capitão de exército como exemplo. Tal capitão ensina seus soldados duas máximas: andem calmamente e com cuidado, e corram por suas vidas. Ambas são verdade, mas se um soldado aplicar a primeira em um cenário de tiroteio e a segunda em um campo minado então ele é tolo. O mesmo acontece para o livro de Provérbios: é preciso entendê-los como verdades gerais que precisam ser aplicadas da maneira correta, na situação e momento corretos.  

O melhor exemplo disso está no capítulo 26, versos 4 e 5, que são famosos por serem “contraditórios”. Vejamos:

“Não respondas ao tolo segundo a sua estultícia; para que também não te faças semelhante a ele.

Responde ao tolo segundo a sua estultícia, para que não seja sábio aos seus próprios olhos.”

Como entender essa aparente incoerência? Simples — usando o bom senso de entender ambas as máximas como verdadeiras desde que aplicadas a situações diferentes. Há momentos em que tentar argumentar com um tolo em sua tolice trará apenas mais problemas e ao final das contas você se fará tão tolo quanto ele. Mas há momentos em que o tolo precisa ser repreendido e corrigido para que aprenda e não leve outros a errar também. Vemos, então, que a segunda parte dos próprios versos nos ensinam como reconhecer quando usar cada um.

Como usá-los?

O perigo, então, é que nos aproximemos do livro de Provérbios compreendendo-o como uma lista de verdades que são sempre aplicáveis. Era exatamente isso que eu fazia e me angustiava porque sabia que não tinha como certos versos serem sempre verdade, a não ser que eu começasse a acreditar em uma versão triunfalista do Cristianismo que simplesmente não é congruente com o resto das Escrituras.

Tim Keller me ajudou muito nesse processo de compreensão. Em uma entrevista sobre seu livro devocional baseado no livro de Provérbios [3] ele nos encoraja a buscar compreender Provérbios não sozinho mas como parte de um todo, no caso o todo dos Livros de Sabedoria (Jó, Provérbios, Eclesiastes, Cantares e parte dos Salmos).

Provérbios nos mostra que o mundo criado tem uma ordem geral (geralmente o preguiçoso passa fome e o zeloso tem o fruto do seu trabalho), enquanto que o livro de Eclesiastes nos mostra que, por causa do pecado, essa ordem é alterada e nem sempre funciona. Se olharmos somente para Provérbios acabaremos como os amigos de Jó, crendo que o homem bom é sempre abençoado e que as desgraças da vida são diretamente castigo divino aos tolos (lembre-se que os amigos de Jó foram repreendidos por Deus!). Mas se olharmos somente para Eclesiastes teremos uma visão pessimista da vida, ignorando as bençãos. Em contrapartida, o livro de Jó nos mostra que apesar da aparente injustiça da ordem criada não funcionar nesse mundo (o justo ainda sofre), Deus continua soberano e no controle de tudo.

Quando compreendemos, então, Provérbios como parte de um todo, sem analisá-lo sozinho, vemos que contém verdades gerais, sendo uma rica e multidimensional exposição da vida humana.

Jesus em Provérbios

O livro de Provérbios é, no final das contas, sobre a sabedoria de escolher entre o caminho da vida e da morte. E esse tipo de sabedoria não pode vir por nossa própria capacidade de escolha, mas é comprada com o sangue de Cristo. Sem a salvação em Jesus é impossível ao homem temer a Deus, o que o livro de Provérbios define como o princípio da sabedoria. Ou seja, sem Jesus seria impossível alçarmos qualquer sabedoria.

O apóstolo Paulo nos mostra no livro de 1 Coríntios que Jesus é, Ele próprio, a sabedoria de Deus:

“Pois a mensagem da cruz é loucura para os que estão perecendo, mas para nós, que estamos sendo salvos, é o poder de Deus.

Pois está escrito: ‘Destruirei a sabedoria dos sábios e rejeitarei a inteligência dos inteligentes’.

Onde está o sábio? Onde está o erudito? Onde está o questionador desta era? Acaso não tornou Deus louca a sabedoria deste mundo?

Visto que, na sabedoria de Deus, o mundo não o conheceu por meio da sabedoria humana, agradou a Deus salvar aqueles que crêem por meio da loucura da pregação.

Os judeus pedem sinais miraculosos, e os gregos procuram sabedoria;

nós, porém, pregamos a Cristo crucificado, o qual, de fato, é escândalo para os judeus e loucura para os gentios

mas para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é o poder de Deus e a sabedoria de Deus.” (1:18-24)

Sem Jesus não seria somente difícil compreender e viver a verdade de Provérbios, seria impossível. Por isso, busquemos sim ler esse livro e guardá-lo, meditando nele e aplicando-o de forma sensata, mas façamos isso com fervente oração, suplicando que nossos corações sejam abertos à sabedoria que só Deus pode dar, por causa de Jesus (cf. Pv. 2:1-6).

Hoje ler Provérbios não me é mais uma dificuldade mas um deleite. Espero que o seja para você também.

 

 

[1] Dicionário Priberam, <https://dicionario.priberam.org/prov%C3%A9rbio>

[2] John Piper, <https://www.desiringgod.org/articles/the-best-discoveries-begin-as-problems>

[3] Tim Keller, <https://www.thegospelcoalition.org/article/keller-wants-to-help-you-become-wise/>

 

Francine V. Walsh é autora dos eBooks “21 dias com minha amiga Elisabeth” e “VOCÊ no Ministério Infantil”, e atualmente está à frente da plataforma online Graça em Flor (gracaemflor.com).