É muito provável que você já esteja familiarizado com a doutrina da depravação total. Se esta é a primeira vez que você se depara com o assunto, em linhas bem gerais, ela afirma que todos os homens nascem em pecado (Sl 51.5), não temos justiça em nós mesmos (Rm 3.10), não buscamos a Deus por nossa própria vontade (Rm 3.11) e que o coração do homem – isto é, o centro de suas vontades e do seu ser – é enganoso e facilmente se entrega à idolatria (Jr 17.1, 9). Porém, não é meu objetivo expor a doutrina – você pode conferi-la através das vastas exposições já apresentadas nas mídias sociais e bibliografias relacionadas –, é trazer a reflexão de como essa doutrina tem uma importante aplicação para a vida de um relacionamento saudável na vida da igreja.
Somos todos pecadores. Se cremos em Cristo, se discernimos espiritualmente o que foi feito na cruz, e se o confessamos como nosso Senhor e Salvador, isso significa que estamos em processo de santificação, porém, ainda pecamos. Isso significa que a depravação que corrompeu em totalidade nossa imagem e semelhança a Deus está sendo redimida ao ponto de termos essa imagem plenamente remodelada conforme a imagem de Cristo. Porém, à medida que somos transformados, ainda caímos por infelicidade decorrente dessa natureza que será totalmente glorificada na nossa futura ressurreição.
Nada fora do comum, certo? Nenhuma novidade ou nada que não seja lido em diversos textos. Porém, como isso tem impactado a forma como lidamos com o pecado cometido pelo próximo? Uma vez que entendemos a depravação total, deveríamos estar dispostos a perdoar, visto que entendemos que o outro é pecador e que sua natureza o inclinará para isso, não obstante éramos assim, mas ainda nessa situação fomos amados por Deus.
Isto é, o entendimento dessa doutrina deveria nos levar a perdoar aquele que pecou contra nós ainda que tenhamos de lutar contra a mágoa deixada pelo pecado cometido. Os casos de pecados cometidos podem variar em sua gravidade. Dessa forma, nossa mágoa varia, dificultando nossa disposição para perdoar. Não precisamos ser falsos em nos recusarmos a admitir que algumas vezes é difícil perdoar. Algumas vezes queremos dar o troco. Outras vezes dizemos que perdão é “deixar para lá”, ou “não ligar”. Reprimimos nossa mágoa e a transformamos em desprezo pelo outro. Com o tempo, o acúmulo de mágoas reprimidas pode nos transformar em uma pessoa fria que diz que não se ofende facilmente e aguenta determinadas ofensas, mas na verdade estamos nos tornando menos empáticos e menos sensíveis.
Tornamo-nos pessoas introvertidas, com dificuldade de relacionamentos, de confiança e principalmente de perdoar genuinamente. Perdoar não é ser insensível à ofensa cometida, antes é senti-la e nesses termos escolher perdoar. Perdoar não é desconsiderar a ofensa, é assumir que houve ofensa e decidir perdoar. Perdoar não é ignorar, porém, é buscar a reconciliação na medida do possível. Pecado não é algo que se pode ser insensível, desconsiderado ou ignorado, antes é algo que deve ser redimido. Assim foi a forma que Cristo agiu para com todos aqueles por quem ele morreu. Ele não foi insensível às dores da cruz, nem desconsiderou o peso da ira do Pai que recaía sobre si por causa dos pecados do mundo, nem ignorou os pecados dos eleitos de seu Pai, mas escolheu perdoá-los.
Em segundo lugar, o entendimento dessa doutrina deveria nos levar a uma quebra de expectativa utópicas de relacionamentos. Não basta saber que o ser humano é falho, precisamos saber que ele é pecador. É natural que admitamos a possibilidade da falha do outro, mas muitas vezes essa possibilidade não é trazida para o plano da realidade. Por mais que admitamos a possibilidade, não queremos admitir a realidade. Ou seja, não somente é possível que alguém peque contra você, isso é uma realidade. É uma realidade que pecarão contra você. Tanto aquelas pessoas com quem você só troca algumas palavras quanto aquelas com quem você troca confissões. Elas são pecadoras. Elas vão falhar. Por isso, assim como o pecado é uma realidade, o perdão também deve ser. Se o pecado do outro contra mim é só uma possibilidade, meu perdão para com ele também não passará de uma possibilidade.
Admitir essa realidade nos prepara para estarmos dispostos a perdoar com menos dificuldade, porque o pecado cometido não nos chocará tanto. Uma vez que me preparo para o impacto, posso me preparar para suportá-lo. Não obstante, isso não é uma desconfiança geral em relação ao outro, mas é um entendimento bíblico antropologicamente saudável. Ao contrário de levar a uma desconfiança geral, ela apruma a confiança. Pode parecer estranho afirmar isto: alguém falhará conosco melhora nosso relacionamento. Mas não é. Todos nós temos a tendência de projetar no outro o que esperamos ser para que dessa forma possamos nos relacionar com eles. Queremos que pensem, procedam e até errem nas mesmas coisas que nós, afinal, isso geraria uma empatia com a qual poderíamos lidar.
Se alguém pensa e procede igual a mim, não haverá discordância. Se alguém erra igual a mim, ela é igualmente falha. Porém, não é assim que somos. Aliás, quanto mais buscamos essas projeções mútuas de igualdade entre pessoas, mais estaremos abertos para nos depararmos como as crises que a realidade traz quando tais projeções levam a uma perda de visão do outro como alguém diferente de mim. Ou seja, buscamos projetar nossa imagem em moldes diferentes e nos frustramos por não haver um encaixe adequado. Se meramente a um nível de tentativa de projeção isso já é frustrado, quanto mais ao nível do pecado. O outro é uma pessoa que é diferente de mim, que é pecador como eu, mas que não é tal qual eu sou. O problema de nossos relacionamentos é a construção de expectativas que esperamos não serem frustradas, porém, o que a doutrina da depravação total nos ensina é que algumas delas serão. O outro pecará em outras áreas, ele cairá em outras áreas, nas quais devo estar disposto a perdoar, pois a recíproca é verdadeira: eu pecarei em áreas diferentes do outro.
Assim, em terceiro lugar, essa doutrina deveria nos ensinar que nossa condição de pecadores nos fará realmente pecar contra os outros. Assim como costumamos ver o pecado do outro como uma mera possibilidade com a qual não queremos lidar, podemos nos convencer que nosso pecado cometido é simplesmente uma questão de erro de propósito que acontece ocasionalmente e sem intenção. É difícil pensar em si mesmo como alguém que pecará contra o outro. É difícil pensar de si mesmo como alguém que pode trazer dores, mágoas e pecado para a vida do outro. Porém, é isto que somos: pecadores. Uma hora falharemos com quem amamos assim como aqueles que amamos falharão conosco. Não podemos ter uma imagem demasiadamente elevada de nós mesmos ao ponto de considerarmos que os pecados dos outros são intencionais, ao passo que os nossos sempre são não-intencionais. Não podemos ter uma imagem elevada de nós mesmos ao ponto de não nos vermos como aqueles que pecarão contra os outros, pois iremos.
A doutrina da depravação total não é simplesmente algo que diz respeito a como Deus nos via, mas também é a forma como nos vemos e como vemos os outros. Não é simplesmente: “Eu era totalmente depravado, mas Deus escolheu me salvar. Aleluia!”, mas também é: “Meu próximo é um pecador e eu tenho que escolher perdoá-lo, pois foi assim que Deus fez comigo” e “Eu sou um pecador e eu falharei com meu próximo”.
A doutrina da depravação total nos leva a um relacionamento bíblico, antropologicamente saudável, pelo fato de não limitarmos nossos relacionamentos a como interagimos uns com outros, como se de alguma forma não houvesse intervenção divina. Isto é, não somos corrompidos pelo meio, nem fruto de estímulos comportamentais. Somos depravados, porque essa é nossa natureza. Essa compreensão deve nos levar aos pés da cruz para que tanto clamemos por perdão como intercedamos uns pelos outros. Essa doutrina deve nos levar a orar por aqueles que pecam contra nós por entendermos que eles são pecadores e que somente Cristo pode redimi-los dessa natureza. Devemos orar para que o Espírito Santo revele ao outro – e a nós mesmos – a condição de pecador, pois o pecado cega.
A doutrina da depravação total deve nos levar à humildade. Uma humildade que nos leva a perdoar por enxergar nossas próprias limitações e pecados assim como as limitações e pecados do próximo.
Perdão não é questão de sentimento, mas de escolha. Deus provou do seu amor ao enviar Cristo para morrer por nós enquanto éramos seus inimigos (Rm 5.8). Deus não suprimiu nossa ofensa contra ele, nem a ignorou, nem a desconsiderou. Antes a imputou no seu Filho. Ele escolheu nos perdoar enquanto éramos seus ofensores e não buscávamos reconciliação. Da mesma forma, devemos perdoar o próximo. Devemos nos espelhar no ato de Deus para conosco, para proceder no pensar e no agir em relação ao próximo.
Finalmente, assim como a doutrina da depravação total não é fácil de lidar, o perdão não também não é fácil de ser dado. Não precisamos negar o fato de que algumas ofensas de fato são mais difíceis de serem perdoadas. Porém, na medida em que nos aproximamos da Palavra de Deus, na medida em que somos santificados pelo Espírito e que somos transformados à imagem de Cristo, as difíceis doutrinas que confrontam nosso pecado se tornam uma verdade em nossa vida, de modo que não podemos mais viver sem e admitimos sua vital importância. Assim também acontece com as implicações de tais doutrinas.
Portanto, o que precisamos não é somente das declarações doutrinárias, mas que o ensino bíblico nos transforme ao ponto de aperfeiçoar nosso ser interior para que sejamos cada vez mais semelhantes àquele que nos salvou. Não é fácil, mas ninguém disse que seria. Nosso chamado não começa com um chamado ao conforto, mas à cruz. Se começamos com uma cruz, certamente temos que esperar um caminho tão difícil quanto. Porém, ao passo que começamos com morte, terminaremos com vida. Começamos com uma cruz, terminaremos com uma coroa. Começamos como pecadores, terminaremos como Cristo.
Matheus Fernandes, Membro da Igreja Batista Filadélfia e seminarista no Seminário e Instituto Bíblico Maranta – SIBIMA.