“Leaf by Niggle” é o título de um conto escrito por J. R. R. Tolkien para o jornal Dublin Review. Niggle era um pintor. Ele desejava produzir um quadro específico. Em sua mente, a primeira ideia foi de uma folha, mas, logo, uma enorme e bela árvore surgiu. E “atrás dela, através das lacunas entre as folhas e os ramos, começou a se abrir uma paisagem; e havia vislumbres de uma floresta que se estendia pela região e de montanhas com picos nevados”. O artista se desinteressou por qualquer outro quadro. Tratou de arrumar uma tela tão grande, que foi necessário uma escada. Niggle sabia que tinha uma longa jornada a cumprir (a morte), a qual vivia adiando. Mas estava decidido a terminar sua imagem antes de partir. Acontece que Niggle era muito detalhista, gastava muito tempo pintando uma única folha. Além disso, vivia parando o trabalho para realizar outros afazeres. Passado algum tempo, por causa de um resfriado, o motorista chegou à porta para levá-lo em sua grande viagem. Niggle ficou desolado, pois não havia terminado sua obra. Após sua morte, o comprador da casa encontrou o quadro. Na tela, uma “única e linda folha”.
A história de Niggle não acaba aqui. Mas, antes de ver seu final, gostaria que você caminhasse um pouco comigo pela imaginação. O pastor John Piper diz em um artigo que imaginar é tentar pensar naquilo que existe, mas que não se vê, ou pensar de um jeito novo sobre as coisas já vistas. C. S. Lewis (que nunca quis fazer um estudo sobre a imaginação, mesmo que essa fosse uma profunda característica dele), tinha uma pensamento semelhante: imaginação é, simplesmente, a criação de imagens. Ela é, portanto, uma forma de decodificar-codificar o mundo. E por que não a fé?
Quando acordamos do sono de nossa velha natureza, nos deparamos com uma longa peregrinação adiante: a de nos tornamos iguais a Jesus a partir de agora até a eternidade. O caminho do discipulado e da santificação. Lewis acreditava na imaginação como uma poderosa aliada para nos manter acordados nesses processos. “Como é possível que Jesus tenha sido homem e Deus?”, “Como soberania de Deus e responsabilidade humana convivem?”, “Como o universo e a natureza que vemos são sustentados?”… Uma imaginação submissa a Deus nos ajuda a acreditar em mais realidade, e não menos, diante de questões inevitáveis que fogem à razão humana. Nos auxilia também a cumprir os mandamentos de Jesus. Por exemplo, Ele disse: “O que você quiser que os outros façam a você, faça também a eles” (Mateus 7:12). Devemos exercitar a empatia e nos imaginar como o outro e pensar no que gostaríamos de fazer para nós.
No sexto livro de As Crônicas de Nárnia (A Cadeira de Prata), a rainha do submundo aprisiona Eustáquio, Jill e Brejeiro no mundo subterrâneo e, em determinado momento, tenta convencê-los de que tudo em que acreditam não é real. Nárnia e Aslam seriam apenas imaginação, ideias inspiradas no “mundo real”. Então, Brejeiro retoma a consciência e brada:
“Uma palavrinha, dona – disse ele, mancando de dor –, uma palavrinha: (…) Vamos supor que sonhamos: ora, nesse caso, as coisas inventadas parecem um bocado mais importantes do que as coisas reais. Vamos supor então que esta fossa, este seu reino, seja o único mundo existente. Pois, para mim, o seu mundo não basta. E vale muito pouco. E o que estou dizendo é engraçado, se a gente pensar bem. Somos apenas uns bebezinhos brincando, se é que a senhora tem razão, dona. Mas quatro crianças brincando podem construir um mundo de brinquedo que dá de dez a zero no seu mundo real”.
Se para Platão, a razão percebia as sombras do mundo real e libertava o homem, Lewis cria uma bela imagem que diz: a imaginação percebe as sombras, não do nosso mundo, mas as sombras brilhantes do outro mundo que escapam para esse lado da existência. A imaginação não deve ser sempre associada ao devaneio, à distração. Ela é a prova de que há um outro país, melhor, mais concreto e verdadeiro que esse que conhecemos (“Se encontro em mim mesmo um desejo que nada nesse mundo pode satisfazer, a única explicação lógica é que fui feito para outro mundo”). Quando temos nossa imaginação despertada, nos apaixonamos, nos curvamos em fascínio. Inúmeras vezes, não nos contentamos com a imagem criada, mas sentimos o ímpeto de ir para além dela. É o início da caminhada para entender e amar a grande história de Deus.
Se a imaginação é útil para entendermos o mundo e a Palavra, é por meio dela, também, que representamos ambos. Nesse sentido, gosto de pensar que a criatividade é o esforço consciente para traduzir a metanarrativa divina em nossas várias linguagens. A Bíblia ordena, repetidamente: diga, louve, mostre, escreva, cante… Compartilhar a verdade e a glória de Deus é um imperativo inevitável para todo cristão. Nós vamos comunicar. É por isso que gosto da ideia do pastor Piper de que a imaginação é um dever cristão:
“Quando uma pessoa fala ou escreve ou canta ou pinta sobre a verdade de tirar o fôlego de uma forma entediante, isso é provavelmente um pecado. A supremacia de Deus na vida da mente não é honrada quando Deus e seu mundo surpreendente são comunicados aborrecidamente”.
É fato que nem sempre conseguiremos entregar a melhor imagem que deveríamos. Nossa natureza pecaminosa ainda está presente, afetando nossas características, amores, e habilidades. Além disso, durante toda a vida, continuamos a aprender, acumular experiências e desenvolver competências. Então, sou um pouco mais misericordiosa comigo mesma: acredito que comunicar constantemente a verdade de tirar o fôlego de uma forma entediante é provavelmente um pecado. “A imaginação é uma chave para matar esse tédio”, diz Piper. Isso porque ela exige novas palavras, novas canções, novas ilustrações, novas metáforas e analogias para tornar linda a comunicação da verdade eterna e gloriosa de Deus.
Por que isso importa? Veja, encontrar a fé reformada mudou minha vida. As doutrinas da graça (por mais que ainda desçam amargas em minha garganta muitas vezes) me trazem consolo e esperança. As cinco solas me fizeram ver o Evangelho real. Mas, há algum tempo, tenho tentado encontrar um jeito de dizer aos meus amigos e irmãos: por favor, não matem a imaginação. Não matem a criatividade, a beleza, o maravilhamento. Todos são partes de nós dadas pelo próprio Deus. A certeza da suficiência de Cristo, da Palavra e da fé não pode nos levar à preguiça, ao medo e à frieza. Pelo contrário, devemos entender que Deus é supremo também sobre nossas mentes – o que inclui a imaginação – e sobre nossas emoções. Uma comunidade (igreja, família ou escola) que entende isso precisa cultivá-las.
Muitos de nós (aqui, definitivamente, me incluo) sentem-se acuados pelo medo de que o talento, a arte e a criatividade lhes subam à cabeça. Medo de serem tão bons naquilo que fazem a ponto de amarem mais as próprias habilidade e criação do que a Verdade que intentaram revelar. Logo, continuamente, se sabotam. Mas se pintamos, cantamos, escrevemos, ensinamos, desenhamos, tocamos nossos instrumentos, louvamos em nossas igrejas (etc.) de forma medíocre e preguiçosa, (1) não estamos revelando e glorificando nosso Criador de maneira excelente, (2) podemos estar usando palavras como “piedade”, “simplicidade” e “zelo” para ocultar nossos pecados e (3) não estamos, de fato, tratando a idolatria do coração; apenas removemos o ídolo de superfície, mas os ídolos ocultos de aprovação, apreciação e poder, provavelmente, permanecem lá.
Você ainda lembra de Niggle? A história não encerrou com a morte. Ao chegar aos arredores do país celestial, algo chama sua atenção e ele corre para ver. “Diante dele estava a Árvore, sua Árvore, terminada. Se é que se podia dizer isso de uma Árvore viva, cujas folhas se abriam, os ramos cresciam e se curvavam ao vento que tantas vezes Migalha sentira ou adivinhara, e tantas vezes não conseguira captar”. A árvore de Niggle não fazia parte de um devaneio, mas da realidade verdadeira. Todos somos Niggle. Desejamos fazer algo e não demora para nos descobrimos bastante incapazes disso. Se esse mundo é tudo que existe, então, nosso trabalho é inútil. Mas se existe mesmo um outro mundo, as palavras de Paulo aos Coríntios sobre o ministério cristão podem também ser entendidas em relação a outros trabalhos: “Nele o vosso trabalho não é inútil” (1 Coríntios 15:58).
Provavelmente, em toda a vida, pintaremos apenas uma ou duas folhas. Mas a boa notícia é: existe mesmo uma árvore. Existe mesmo uma realidade última que Ele trará e nosso papel é mostrá-la agora, ainda que incompleta. Submeta sua criatividade ao Criador para que você seja capaz de apontar com excelência e temor para Ele em tudo que fizer. E descanse sabendo que a Árvore não é sua. Que sua comunidade não tenha um louvor enfadonho, mas cada vez mais bonito, bem ensaiado e cristocêntrico. Que as crianças de sua igreja tenham a aula mais incrível e criativa que você puder dar. Que seu design seja inteligente. Que seus poemas sejam belos.
Pinte a Árvore.
Alana Lins. Fortalezense e membro da Igreja Batista Maanaim. Jornalista e fotógrafa. Sigo tentando fazer a jornada desse lado da vida valer a pena por Ele.
Referências
Obey God with Your Creativity, John Piper
O Racionalista Romântico, Randy Alcorn, John Piper, Philip Ryken, Kevin Vanhoozer, David Mathis e Douglas Wilson
Deuses Falsos, Timothy Keller
Como conciliar fé e trabalho, Timothy Keller
Árvore e Folha, J. R. R. Tolkien
Excelente artigo!